A busca do inominável em A Morte Absoluta

  A busca do inominável em A Morte Absoluta

Elcio Lucas1

RESUMO
Morte é um tema recorrente na poesia de Manuel Bandeira. No poema “A morte absoluta”, o poeta pernambucano pode exercitar uma reflexão bastante peculiar: a suposição de um desaparecer “de corpo e de alma”, que não deixasse vestígios da existência do ser nem mesmo na memória histórica dos homens. Curiosamente, em 1940, quando o poema foi publicado, Manuel Bandeira havia tomado posse na Academia Brasileira de Letras, sendo então laureado com o título de “imortal” de nossa literatura. Embora o “A morte absoluta” possa se relacionar com este fato da vida pessoal do poeta, a nossa análise buscará centrar-se nas possíveis relações entre os anseios expressos pelo eu lírico e algumas sentenças axiomáticas expressas pelo Taoísmo, Cristianismo, Hinduísmo e Budismo.

Palavras-chave: Morte, Manuel Bandeira, ser, alteridade.

ABSTRACT
Death is a recurring theme in the poetry of Manuel Bandeira. The poet from Pernambuco has a peculiar reflection in the poem "A morte absoluta": the supposed disappearance of body and soul without a trace remains in the historical memory of men. Interestingly, when the poem was published in 1940, Manuel Bandeira was elected to the Academia Brasileira de Letras and received the title of "immortal" in our literature. Although some relation with this fact is established, our analysis will seek to focus on possible links between the concerns expressed by the lyrical I in the poem "A morte absoluta" and some axiomatic sentences expressed by Taoism, Christianity, Hinduism and Buddhism.

Keywords: Death, Manuel Bandeira, being, otherness.

Nascido no Recife em 1886, Manuel Bandeira descobriu-se tuberculoso aos 18 anos de idade e passou a conviver com a perspectiva de morte prematura.  Esta fatalidade — a tuberculose não tinha cura naquela época — provocou uma reviravolta na vida do então estudante de arquitetura, forçando-o a abandonar o curso. Em busca de melhores ares percorre Campanha, Teresópolis, Maranguape, Uruquê, Quixeramobim, e em 1913 interna-se no sanatório de Clavadel, Suíça. Bom leitor, ali faz amizade com o ainda desconhecido Paul Éluard, que lhe empresta livros de autores contemporâneos. Nesse mesmo sanatório trava conhecimento com o poeta húngaro Charles Picker, que vem a falecer da doença. Felizmente para literatura brasileira, o poeta pernambucano iria resistir ainda por muito tempo às investidas da “indesejada das gentes” (para utilizarmos uma expressão sua) até 1968, quando falece aos 82 anos na cidade do Rio de Janeiro, que adotara como sua desde que para lá viera com a família em finais do século dezenove. (BANDEIRA. 2009, p. xix-xxviii)
Assim ungido pela água corrente do destino e pelo sal da transitoriedade da vida, Bandeira irá construir extensa obra a partir da publicação de seu primeiro livro, A cinza das horas, em 1917. Não foi poeta de um só tema, porém, a viver sob a sombra do fatídico espectro a lhe rondar, fez-se recorrente a temática da morte em muitos de seus versos. Das memórias de sua infância no Recife às suas mais íntimas experiências na vida cotidiana do homem urbano e simples que era, reuniu imagens, imaginação e reflexões sobre a relação entre a vida e a morte. Sem dúvida, essa experiência “deixou traços profundos em sua atitude e em seu próprio modo de conceber o poético, sem falar no temário inevitável e recorrente da morte”.  (ARRIGUCCI Jr. 1990,  p. 259).
Muitas das vezes em sua poesia encontramos um tom autobiográfico, como no poema Epigrafe: “Sou bem-nascido. Menino/ Fui, como os demais, feliz./ Depois, veio o mau destino/ E fez de mim o que quis.”; a aludir metaforicamente a inevitável transição: “Onde estavam os que há pouco/ Dançavam/ Cantavam/ E riam/ Ao pé das fogueiras acesas? [...] — Estavam todos dormindo/ Estavam todos deitados/ Dormindo/ Profundamente”; ou a contemplar a passagem de um enterro perante homens indiferentes em Momento num café: “[...] Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado/ olhando o esquife longamente/ Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade/ Que a vida é traição/ E saudava a matéria que passava/ Liberta para sempre da alma extinta.” (BANDEIRA. 2009) Ao falar da morte, Bandeira examina a vida e seu mistério.  No comentário conjunto de Gilda e Antonio Candido, a sua poesia “tem a gravidade religiosa frequente nesse poeta sem Deus, que sabe não obstante falar tão bem de Deus e das coisas sagradas, como entidades que povoam a imaginação e ajudam a dar nome ao incognoscível”. (CANDIDO; CANDIDO. 1986, p. xxvii):

O langor que existe em si e/ou por si

“A Morte Absoluta”, poema em versos livres incluído em Lira dos cinquent’anos (1940), não segue métrica fixa.


A Morte Absoluta


Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão — felizes — num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: “Quem foi?...

Morrer mais completamente ainda,
— Sem deixar sequer esse nome.

(BANDEIRA. 2009, LC p.152)

O ritmo inicialmente monótono, estancado nos seguidos pontos finais dos três primeiros versos – dois destes, mínimos –, segue truncado pelas seguidas vírgulas e hífens a partir do quarto verso até o escorrer na horizontalidade destacável do nono: “Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte”. Daí ao final, segue os borbotões, ora contraído pela carregada pontuação, ora dilatado pelo encadeamento de um verso a outros: “Morrer tão completamente/ Que um dia ao lerem o teu nome num papel/ Perguntem: ‘Quem foi?...’”; e sibila escorregadio “— Sem deixar sequer esse nome”, na aliteração do verso conclusivo.
O poema sugere um total aniquilamento do ser, um desaparecer “de corpo e de alma” que não deixe vestígios de sua existência nem mesmo na memória histórica dos homens. E atem-se a destacar as peculiares características desse desaparecimento. O uso em destaque, quase irônico, do adjetivo “felizes!”, a qualificar as flores que apodrecerão após terem ornado um “triste despojo de carne”, provoca no leitor um primeiro estranhamento; e a presença em anáfora do verbo intransitivo “morrer”, sete vezes repetido, somado ao advérbio de intensidade “completamente”, três vezes grafado ao longo do poema, transmite intensidade ao sentimento de fatalidade e à obsessão temática de sonoridade langorosa, que acentua no poema o desejo de um desaparecimento perfeitamente concluído.
O poema exalta a morte, mas não uma morte qualquer. Se a deseja tão completa, absoluta, certamente necessita de uma vida que a prepare, do contrário, como não “deixar um sulco, um risco, uma sombra”? Não por acaso, de tanto falar em morte o poema acaba por tropeçar na vida.
Observemos que na estrofe inicial a locução do discurso é impessoal. Curtos, enigmáticos, lacônicos, os três primeiros versos acabam por ser mais reflexivos que apelativos, como quem diz de si para si: “Morrer./ Morrer de corpo e de alma./ Completamente.”, o que  faz espargir para os versos seguintes a intimidade monológica do eu lírico.
Ressaltemos que muito pouco nos é dado saber no poema sobre a vida desse eu lírico, apenas que ainda vive, já que reflete sobre a morte futura, presumindo que não deixará saudades nos vivos quando da chegada desta, já que esses certamente derramarão lágrimas sobre seu rosto muito mais pelo “espanto” que a morte provoca que pelas lembranças por ele deixadas. Da terceira estrofe, é possível cogitarmos que, embora o eu lírico possa até aceitar a existência de “uma alma errante” – o que implica um questionamento existencial, possivelmente religioso, que não sabemos qual é –, não é seu desejo deixá-la como presença, muito menos rumo a um idealizado céu, a seu ver impossível de satisfazer ao que dele foi idealizado: “Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?”
Nesse ponto, a primeira referência no discurso a uma segunda pessoa permite-nos lê-la por um lado como limitante destinatária, já que na chave da reflexão interior do eu lírico que vínhamos fazendo “teu sonho” seria substituída por “meu sonho”, com a resultante “Mas que céu pode satisfazer meu sonho de céu?” a limitar o destino da mensagem ao próprio eu lírico locutor, sem quebra do monólogo; ou a podemos ler como amplificante destinatária, ao substituirmo-la por “nosso sonho”, de nós leitores, implicitamente convidados a pensar em nossa própria idealização de céu. Assim, a reflexão em curso no poema passa do foro particular do eu lírico para o nosso.
O verso que abre a estrofe seguinte, “Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra”, expressa desejo que fatalmente demandaria ação em vida para efetivamente se concretizar, como a que faz exemplarmente a tartaruga marinha após a desova na areia da praia, que ao voltar para o mar abana o rabo sobre as suas próprias pegadas na areia a fim de apagá-las e assim proteger seus ovos, sua espécie. A ênfase nesse apagamento é incrementada ainda mais nas duas últimas estrofes, referência à nomeação do ser, que se a princípio deve deste ser dissociado, ao ponto de ao lê-lo se pergunte: “Quem foi?”, completamente deveria desaparecer – nome/ser – sem deixar vestígio.
Se do eu lírico não temos muito mais o que dizer, resta-nos investigar o que se passava na vida de Manuel Bandeira por ocasião da publicação do poema “A morte absoluta”. É o que faremos a seguir.

Um recuo de hesitação

Lira dos cinquent’anos foi publicado em 1940, mesmo ano da candidatura, eleição e posse de Manuel Bandeira na Academia Brasileira de Letras. Insistentemente requisitado pelos amigos acadêmicos ¬Ribeiro Couto, Múcio Leão e Cassiano Ricardo, depois de muito pestanejar, o poeta pernambucano cedeu e colocou a sua candidatura à apreciação dos demais membros daquela casa literária, concorrendo à vaga aberta com o falecimento de Luís Guimarães Filho.
O título do livro Lira dos cinquent’anos foi criticado por um amigo do poeta, ‘inteligentíssimo’, no dizer talvez irônico do próprio Bandeira, como já sendo um primeiro sinal de uma lamentável academização. Eleito em agosto de 1940, com 21 votos no primeiro escrutínio, toma posse em 30 de novembro. Foi saudado por Ribeiro Couto, que no seu discurso de saudação ao poeta recordou: “Tivestes um recuo de hesitação; não era uma hesitação de fundo antiacadêmico, porque sabeis que aqui dentro só viríeis encontrar companheiros...” (BANDEIRA. 1958, p. 86). O próprio Bandeira confirma esta hesitação no “Itinerário de Pasárgada”, quando confessa-nos:
Em 1940 a idéia da Academia ainda implicava para mim, como ainda implica hoje, a idéia de casa de Machado de Assis, casa de Nabuco, casa de João Ribeiro, para citar três grandes espíritos que fascinaram a minha adolescência. E a hesitação me nascia precisamente de me sentir desqualificado para sustentar a tradição que eles, com outros, tão magistralmente encarnavam. Partidário da impureza em matéria de língua, parecia-me descabido e quase petulante pretender lugar numa companhia que, pelo menos teoricamente, sempre se considerou zeladora da pureza do idioma. (BANDEIRA. 1958, p. 88)

E adiante arremata: “Eu tinha mais contra a Academia duas ojerizas. Uma, mencionada por Couto, a do fardão; outra, a de sua divisa. Ouro, louro, imortalidade me horrorizavam.”
Tendo finalmente resolvido aceitar a indicação de seu nome, é laureado com a “imortalidade” imputada a todos os membros daquela casa, nada menos que a pretensa perpetuação ad eternum do nome, da obra, do pensamento dos acadêmicos às gerações futuras. Convenhamos ser esse um título que realmente deve pesar nos ombros, porém, como sentencia a sabedoria popular, “o problema não é a carga, mas sim quem a carrega”.
Assim, de volta ao nosso poema em análise, não podemos deixar de notar que diante dos relatos acima destacados o “A morte absoluta” pode perfeitamente ser lido com expressão clara do desejo de evasão do eu-lírico, tendo como pano de fundo na vida pessoal do autor esse momento da hesitação/consagração do nome de Manuel Bandeira por ocasião de sua admissão à Academia Brasileira de Letras. Pode-se até pensar na hipótese de que o autor tenha lançado mão do subterfúgio poético – a desejada morte absoluta, o desaparecimento tão completo de não deixasse quaisquer vestígios de si entre os homens – para livrar-se, mesmo que momentaneamente, do peso da imortalidade lhe outorgada; entretanto, como quem responde uma pergunta com outra, o que pretendemos mesmo neste artigo é ainda indagar alguns outros aspectos desse belíssimo poema por nós ainda não analisados.
Como a ponta de uma agulha escondida num algodão, a indagação efetuada no já citado verso “Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?” oculta uma questão fundamental para a análise que pretendemos. Após a morte do corpo físico continuará ou não a persistir na alma2  a consciência egótica, com suas necessidades e desejos a serem satisfeitos, a ponto de se decepcionar com o céu alcançado? O poema guarda, portanto, certas possibilidades e é preciso, pois, cautela, já que adentra princípios fundamentais dos estudos de correntes filosóficas e religiosas, que passaremos a tratar no próximo capítulo.

 

A perda de si mesmo

No poema em questão, mais que o conceito de um tipo específico de morte, é a possibilidade de um especial apagamento (nome, ego, ser etc.) que nos chama a atenção. A seguinte passagem da reflexão de Baudrillard em Cool  memories auxiliará na especificação do ponto ao qual desejamos nos concentrar:

Dying is nothing. You have to know how to disappear.
Dying comes down to biological chance and that is of no consequence. Disappearing is of a far higher order of necessity. You must not leave it to biology to decide when you will disappear. To disappear is to pass into an enigmatic state which is neither life nor death. Some animals know how to do this, as do savages, who withdraw, while still alive, from the sight of their own people. (BAUDRILLARD. 2003, p. 24)3

Para ampliarmos o nosso campo de abordagem da questão, é oportuno retomarmos uma reflexão que fizemos anteriormente aqui neste artigo: na perspectiva do poema em análise está claro que o alcance efetivo da desejada “morte absoluta” será completamente realizado com a supressão da vida. Recordemos que a própria enunciação-reflexão de tal desejo no poema é feita em vida pelo eu lírico, que expressa o desejo de alcançá-la. Observemos ainda que, embora a morte seja o nosso inevitável destino, a citada “morte absoluta” não será a morte de todos nós. Portanto, por ser de um tipo especial, necessariamente exige determinadas condições para que venha a ocorrer da maneira que se espera, ou seja, o sujeito desejante não poderá simplesmente morrer. Assim sendo, esperamos ter demonstrado que o alcance da “morte absoluta” de que nos fala o poema somente será concretizado se o sujeito desejante preparar as condições necessárias antes do advento de sua morte. Determinar que condições são essas é a nossa próxima tarefa.
Uma das principais correntes filosóficas oriundas da antiga China, o Taoísmo (surgido provavelmente no século VI BCE) reconhece a capacidade do pensamento racional como limitada em compreender a realidade da vida. A estreita relação entre opostos aparece em um dos poemas do Tao te ching:
Só temos consciência do belo
Quando conhecemos o feio.
Só temos consciência do bom
Quando conhecemos o mau.
........................................
(LAO-TSÉ. 2010, p. 30)

Os taoístas concentram a atenção integral na observação da natureza a fim de obter melhor discernimento. “A palavra tao é constituída de duas imagens: cabeça e caminhar. Como cabeça, podemos entender algo relativo à consciência; como caminhar, ir deixando o caminho para trás. O Tao é este estado de consciências dinâmica.”(TORNAGHI. 1989, p.10) Chuang-Tzu, um dos três grandes mestres do Tao ao lado de Lie-Tzu e Lao-Tsé, se é que esse último realmente tenha existido, tem uma frase que muito lembra a questão que o nosso poema suscita: “O homem perfeito é desprovido do eu; o homem inspirado é desprovido de obras; o homem sábio não deixa nome.” (NORMAND. 1987, p. 111) Temos, portanto, três condições especificadas por Chang-Tzu: 1) “desprovimento do eu”; 2) “desprovimento de obras”; 3) “não deixar nome”. Passemos, pois, a investigá-las.
A importância da primeira das condições, o “desprovimento do eu”, é enfatizado no capítulo 10, versículo 39, do evangelho de São Mateus: “Quem achar a sua vida perdê-la-á, e quem perde a sua vida, por amor a mim, achá-la-á.” (MATEUS. 1979, p. 1296) Na lógica cristã, a neutralização deste paradoxo parte do reconhecimento do obstáculo que o apego egocêntrico causa ao ser. Em um sermão dedicado aos santos mártires mortos pela espada, Meister Eckhart começa por expor suas idéias acerca da morte e do sofrimento, para depois afirmar, citando São Gregório: “Ninguém recebe tanto de Deus quanto o homem que está inteiramente morto”, porque a morte lhes dá a existência — perdem a vida, mas encontram a existência” (ECKHART apud SUZUKI. 1976, p. 24) O achar a própria vida presume a constatação: “- eu achei!”, o que revela a visão egoica, causa origem da dualidade da separação entre ser e Deus, que idealmente não deveria ocorrer. No Sutra do Diamante, o Buda fala a seu discípulo Subhuti que “[...] os Buscadores do Caminho, os grande homens, deverão fazer dádivas a outrem sem estarem apegados ao desejo de deixarem vestígios”. Tendo explicado em uma passagem anterior que: “[...] todo aquele que tiver pensamentos de ‘eu’, ‘existir com substância própria’, ‘substância própria’, ‘indivíduo’, etc., não pode mais ser considerado um Buscador do Caminho.” (GONÇALVES. 1976, p. 70-71)
Na visão cristã, “quem perde a sua vida”, ou seja, entrega a sua vida espontaneamente a Deus, a achará verdadeiramente, já que, por estar desprovido do eu, o que ganha permanece em Deus; e como ele próprio Nele permanece, a vida que ganha é a vida de Deus nele. Meister Eckhart, místico cristão do século XIII, analisa essa condição em outro de seus sermões:
Ser é Deus...Deus e ser são a mesma coisa — ou, do contrário, Deus seria feito de outro e assim não seria deus ele próprio...Tudo que existe tem o fato de ser através de ser e procedendo de ser. Portanto, se o ser é algo diferente de Deus, as coisas derivam seu ser de algo diferente de Deus. Além disso, nada há anterior ao ser, porque aquele que confere o ser cria e é criador. Criar é tirar o ser do nada. (ECKHART apud SUZUKI. 1976, p. 23)

No Budismo, prática religiosa surgida por volta do século V BCE, também observa ensinamentos para o “desprovimento do eu”: “Estudar o caminho do Buda é estudar o eu. Estudar o eu é esquecer o eu” (DOGEN. 1993, p.84)
Não por acaso, a segunda condição é o “desprovimento de obras”, que não poderia ocupar a primeira posição nas três condições que estamos analisando, pois, somente após desprovido do eu faz-se possível desprover-se de obras. Observemos os seguintes conselhos de Jesus Cristo segundo Mateus (cap. 6, vers. 2): “Quando, pois, dás esmola, não toqueis a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens”, e no versículo seguinte: “Quando deres esmola, que tua mão esquerda não saiba o que fez a direita”. (MATEUS. 2003, p. 1289-1290) Atentemos que há efetivamente uma ação, o dar esmolas, o que, sem dúvida, caracteriza-se por ser uma obra executada pelo ser, porém, a advertência é exatamente para que no momento mesmo da ação o ser esteja desprovido do eu (não tocar trombetas na primeira citação, não tomar conhecimento do bem que ele próprio faz, na segunda); ou seja, para que as obras do ser sejam desprovidas é necessário antes desprovimento do ego: eu fiz, eu dei... etc.
No Bhagavad Gita – episódio do épico poema clássico hindu Mahabharata (conhecido na presente forma desde o séc. IV CE) – narra o diálogo entre Krishna e Arjuna, no qual também encontramos referência ao despojamento citado no parágrafo anterior: “Sábios dotados de perfeita sabedoria não se apegam aos frutos do seu trabalho, e com isto se libertam para sempre da escravidão de nascimento e atingem o estado de beatitude absoluta. (ROHDEN. 1984, p. 31-32)
A terceira e última condição, “não deixar nome”, é decorrente das duas primeiras, pois não havendo ego, as obras não serão suas, mas de Deus, e Ele, é o não nomeado.
“Jacó, o patriarca, chegou a um lugar, quando era tarde. Nós precisamos de um lugar. O que é esse lugar? O lugar onde Jacó dormia não tinha nome, isso quer dizer que a essência de Deus apenas é o lugar da alma e não tem nome. O lugar onde Jacó dormia não tinha nome... O lugar é Deus, mas neste lugar Deus não tem nome. Quando nós chegamos a este lugar, então podemos descansar e dormir em paz. Enquanto nós permanecermos na dualidade, não conseguiremos achar paz, nunca.”. (TOKUDA. 1995, p. 24-25)

Como vimos, para se alcançar o inominável é preciso despojar-se. Não por acaso Mestre Dogen ressalta a seus discípulos: “Para praticar o Darma, primeiro deves aprender a viver na pobreza. Abandona o desejo de fama e de proveito, e não adules nunca nada.” (DOGEN, 1993, p. 84)
Percorridas as três condições para o entendimento do problema que o poema nos coloca, faremos as nossas considerações finais.

Conclusão


Manuel Bandeira. Ateu, materialista, religioso, metafísico, metafórico, evasivo, filósofo? Acima de tudo, poeta. Se realmente houve algum motivo relacionado com o seu adentrar a Academia que em parte explique o poema “A morte absoluta”, não será através desse viés que se esgotará a gama de relações que esse texto suscita.
Em “A morte absoluta”, quem é convidado à extinção é o ego, o pequeno ego que compreende o ser físico e a alma como separados, e assim, num processo em cadeia, estabelece a dualidade, eu e outro, vida e morte. Quando o morrer é o esquecer de si mesmo que nos fala o budismo, ou o perder a própria vida que nos fala o cristianismo? Uma morte como essa não deixa despojos em decomposição, não se apega à morte física, não é causada em sofrimento pelo temor. É abandono de corpo e mente.
Céu e inferno. Extremada dualidade. E que céu idealizado por outro alguém nos satisfaria? Na suposição de que após a nossa morte ainda reste alguns fios de nossos processos mentais, seríamos tão incapazes, como temos sido, de compreender e respeitar o outro que conosco compartilha o mesmo espaço? O mesmo céu? O eu e o outro.... outras tantas extremadas dualidades.
Assim, com instigante indagação, íntima reflexão, Bandeira desmorona castelos alicerçados sobre podres ilusões. Não fica pedra sobre pedra. O desaparecer do qual nos fala o poeta não deixa pegadas na areia. Os pássaros voam de cá para lá, de lá para cá e sabem o caminho mesmo que no céu não deixem rastros. Não deixar sequer um nome é estar integrado ao inominável.  E até disso, esquecer.

REFERÊNCIAS

ARRIGUCCI Jr., Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
BANDEIRA, Manuel.  “Itinerário de Pasárgada.”  In:  ________. Poesia e Prosa.  Rio de Janeiro: Aguillar, 1958.
BANDEIRA, Manuel.  Antologia Poética.  Rio de Janeiro: Editora do Autor.  1961.
BANDEIRA, Manuel. Manuel Bandeira: poesia completa e prosa, volume único. Prefácio, organização e estabelecimento do texto André Seffrin. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009.
BAUDRILLARD, Jean.  Cool  memories. Translated by Chris Turner. London: Verso, 2003.
CANDIDO, Gilda; CANDIDO, Antonio.  “Introdução”.  In:  BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira.  Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
DOGEN. A lua numa gota de orvalho. Tradução Sônia Regis.  São Paulo: Siciliano, 1993.
GONÇALVES, Ricardo M. (Org.). Textos budistas e zen-budistas. Seleção, tradução, introdução e notas Ricardo Gonçalves. São Paulo: Cultrix, 1976.
LAO-TSÉ.   Tao te king.  Tradução e apresentação  Pedro Tornaghi.  Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.
LAO-TSÉ. Tao te ching. Tradução e notas por Huberto Rohden. São Paulo: Martin Claret, 2010.
MATEUS.  “Evangelho segundo São Mateus”.  In: BÍBLIA. Bíblia Sagrada. 43 ed. São Paulo: Ave-Maria, 2003.
NORMAND, Henry.  Os Mestres do Tao.  Tradução de Maria Stela Gonçalves.  São Paulo: Pensamento, 1987.
ROHDEN, Huberto (Org.).  Bhagavad Gita.  Tradução de Huberto Rohden.  São Paulo: Fund. Alvorada, 1984.
SUZUKI,  D. T.  Mística Cristã e Budista.  Tradução de David Jardim.  Belo Horizonte: Itatiaia, 1976.
TOKUDA,  Ryotan.  Mística Comparada Cristã e Budista: Meister Eckhart e Dogen Zenji. A  Virgem e a Mulher de Pedra.  Transcrição e tradução de Rita Böhm.  Ouro Preto: UFOP/Imprensa Universitária, 1995.
TORNAGHI,  Pedro.  “Apresentação”.  In:  LAO TSE.   Tao Te King.  Tradução e apresentação de Pedro Tornaghi.  Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.
 

1.  Professor Doutor em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, membro do corpo docente do Mestrado em Letras-Estudos Literários da Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes. Mantém também atividade docente nas instituições Funorte e Facit (Montes Claros-MG). Organizou juntamente com o monge Marcos Ryokyu o livro Amigos do Tokudinho, setenta e sete depoimentos sobre o monge zen-budista Tokuda Igarashi. (CLA editora, 2009)
elciolucas@yahoo.com
 2. Para efeito de análise, hipoteticamente dada como existente.
  3. “Morrer não é nada. É preciso saber desaparecer./ Morrer decorre do acaso biológico e não implica nenhuma consequência. O desaparecimento é de uma ordem superior de necessidade. Você não pode deixar para a biologia a decisão do seu desaparecer. O desaparecer é passar para um estado enigmático que não é nem vida nem morte. Alguns animais sabem como fazer isso, como fazem os selvagens, que à vista de seu próprio povo se retiram enquanto ainda estão vivos.” (tradução nossa)