Maria Mácia Matos PINTO

HISTÓRIAS BRASILEIRAS NA POESIA DE VITORINO NEMÉSIO
Maria Márcia Matos Pinto1

RESUMO: A geografia, a história e a cultura brasileiras, da forma como foram sentidas por Vitorino Nemésio, transformaram-se em registros literários em prosa e verso que levam a um (re)conhecimento do Brasil pelo olhar do outro. A análise do poema “No cemitério de Santa Efigénia de Ouro Preto”, realizada neste artigo, poema este fruto das andanças do autor pelas cidades históricas mineiras, pretende apresentar um pouco do olhar que o poeta e prosador açoriano dedicou às nossas terras.

Palavras-chave: poesia de Vitorino Nemésio; cultura brasileira; olhar estrangeiro.

ABSTRACT: Brazilian geography, history and culture, the way they were felt by Vitorino Nemésio, were transformed into literary registers in prose and verse which lead to a (re)cognition of Brazil through the eye of the other. The analysis of the poem “No cemitério de Santa Efigénia de Ouro Preto”, carried out in this paper, a poem which was a result of his journeys through the historical cities in Minas Gerais, has the objective of presenting a bit of the look the Azorean  writer dedicated to our lands.

Key-words: Vitorino Nemésio’s poetry; Brazilian culture; foreign look.   

1. VITORINO NEMÉSIO: UM DESCONHECIDO

O autor português Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro Gomes da Silva (1901-1978), natural da Praia da Vitória, Ilha Terceira, nos Açores, foi um profundo admirador da cultura brasileira. Apesar das sete viagens que fez ao Brasil em missões culturais, entre os anos 1950 e 1970, a produção literária que adveio dessas visitas à nossa terra ainda é praticamente desconhecida não só pelo público de maneira geral mas também por representantes do setor acadêmico. Nessas vindas ao país, Nemésio visitou boa parte do território brasileiro, porém seu trabalho o levou a concentrar-se especialmente no Rio de Janeiro e na Bahia. Entretanto, ele teve a oportunidade de visitar outros estados, como São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará, Maranhão e de fazer a viagem de Belém do Pará a Manaus pelo Rio Amazonas, registrando as impressões que adquiriu nesses trajetos em crônicas e poemas.
O conjunto de obras dedicadas a este país tem peso significativo na sua produção literária. Quando aqui esteve pela primeira vez, no ano de 1952, o poeta escreveu os Nove romances da Bahia e o poema “Elegia ao cemitério de Santa Efigénia de Ouro Preto”, que contemplam os elementos da cultura negra observados nesses lugares e que foram publicados na primeira edição de Nem toda a noite a vida (1952). Posteriormente, quando da publicação de O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos (1954), eles foram ali incluídos, os primeiros sob o título de “Romanceiro da Bahia” e o segundo passando a intitular-se “No cemitério de Santa Efigénia de Ouro Preto”, abrindo a parte “O segredo de Ouro Preto”. Os Nove romances da Bahia voltam a aparecer na edição Violão de Morro [...] 9 Romances da Bahia (1968)2 , que inclui os poemas relativos à vida do povo simples, especialmente o negro e o mestiço, no Rio de Janeiro. Ainda sobre este país, o autor escreverá Ode ao Rio, ABC do Rio de Janeiro (1965), uma tentativa de épico moderno que, a partir das imagens do Rio de Janeiro como cidade moderna, resgata o percurso histórico que une Brasil a Portugal, no sentido de celebrar as figuras marcantes dessa trajetória. Toda essa construção poética foi posteriormente reorganizada pelo próprio autor, vindo a formar o volume Poemas Brasileiros (1972).
O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos foi o primeiro volume de crônicas dedicado às terras brasileiras. Nele, Vitorino Nemésio registrou as impressões que colheu na sua passagem por Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Bahia, sendo os dois últimos estados privilegiados nessa obra. Nas terras mineiras, o destaque recaiu sobre as cidades históricas, alvos de um conjunto de crônicas e de um poema. A Bahia também mereceu grande atenção, sendo talvez o estado mais apreciado pelo poeta e prosador, pois ali ele percebeu na cultura popular elementos que o remetiam ao espaço natal dos Açores. Nos textos dedicados ao povo e às terras baianas, a afetividade é um traço indelével, que faz que o retrato constituído seja marcado, do lado humano, pela completa fraternidade e, com relação ao espaço, pela harmonia entre natureza e construções históricas.

2. ALGUNS ASPECTOS TEÓRICOS SOBRE O OLHAR ESTRANGEIRO ÀS TERRAS DESCOLONIZADAS

A crítica pós-colonialista colocou em evidência o fato de que a construção da identidade nas ex-colônias tem relação intrínseca com os discursos que as ex-metrópoles produziram a seu respeito. Isto fez emergir discussões sobre dominação e identidade, cujos pontos de reflexão centram-se em questões tais quais: como esses novos países passaram a se ver após a descolonização? Como são vistos pelas ex-metrópoles e pelo restante do mundo? Qual a imagem que transmitem como nação num nível global diante dos novos imperialismos?
Salta aos olhos, nesse sentido, que as nações ainda hoje marcadas pela imagem do atraso econômico e da barbárie social são aquelas que estiveram submetidas a um processo predatório de colonização, implantado desde os primeiros empreendimentos expansionistas do século XVI, e que ressurgiu com interesses renovados no século XIX.
Particularmente a partir dos anos 1980, vozes como as de Edward Said, Homi K. Bhabha e Stuart Hall levantaram em suas análises a problemática da descolonização e dos novos imperialismos no sentido de demonstrar até que ponto as identidades nas ex-colônias são um produto de “estereótipos” – termo usado por Bhabha (1994) –, representações fixas definidas pelos países que as dominaram e pelos que hoje têm o domínio da economia mundial. Apesar de esse discurso estar muito voltado para as nações asiáticas e africanas que estiveram sob o jugo de Inglaterra, França, Itália, Bélgica e Alemanha, além do papel imperialista que os Estados Unidos exercem atualmente, ele faz pensar sobre as representações que Portugal concebeu e concebe sobre suas ex-colônias, o que veio a interferir na definição do paradigma cultural dessas nações.
Obviamente, há toda uma tradição literária que surgiu do relacionamento Portugal-metrópole e Brasil-colônia, começando pela Carta de Pero Vaz de Caminha, a partir da qual certos elementos da nossa psicologia nacional foram forjados, como, por exemplo, a imagem do Paraíso terrestre que ali se configura. Depois daquele primeiro momento, inúmeros viajantes passaram por nossa terra, deixando impressões ora positivas ora negativas sobre os aspectos naturais e sobre as relações econômicas, políticas, sociais e culturais aqui estabelecidas, a respeito dos quais se pode perguntar se advieram de pré-conceitos interiorizados ainda no país de origem ou se foram fruto de um convívio mais ou menos confortável nos rincões brasileiros. Desse modo, essas imagens têm por pressuposto um conjunto de fatores que se interligam, como aqueles relativos ao contexto sócio-cultural das origens do viajante e à sua formação ideológica, assim como os interesses que induziram à viagem e que atuam na predisposição psicológica do sujeito quando da observação do novo contexto. Ademais, há que se considerar as situações vividas por este nos locais visitados, que podem ser agradáveis ou não, o que irá influenciar as representações formuladas sobre eles. Assim, a compreensão das imagens apresentas sobre determinado lugar só se concretiza de fato na consideração da complexa rede de informações que envolve a perspectiva do viajante.
Tendo em vista os elementos citados com relação ao contexto que cerca o viajante, pode-se dizer que, mesmo antes de sua primeira vinda ao Brasil, Nemésio já tinha uma visão extremamente positiva do país. Ele possuía um conhecimento bastante consistente de nossa história e literatura. No âmbito da história, ele procurou mostrar que, mesmo diante de uma relação opressiva como a de metrópole-colônia, Brasil e Portugal se uniram num destino comum pelo qual o primeiro definiu e o segundo reelaborou suas configurações nacionais a partir dos encontros étnicos e das trocas culturais ocorridas no período colonial. Quanto à literatura, o escritor português foi grande admirador do ciclo regionalista brasileiro, justamente pelos elementos da cultura popular que as obras desse movimento incorporaram. 
Desse modo, o que se observa nos escritos brasileiros de Nemésio é um sentido de valorização dos traços característicos da nossa nacionalidade, que muitas vezes escapam à observação do próprio brasileiro, o qual, pelo contato frequente, não lhes dá a devida importância, não questionando a origem e o significado de muitas de nossas manifestações culturais. Porém, nada passa despercebido ao olhar perscrutador do viajante Nemésio. Assim, um dos lugares de sua predileção, como deixa registrado em algumas crônicas, são as feiras nordestinas, pois ali ele tem a oportunidade de entrar em contato com objetos e práticas típicos da nossa tradição nacional: são artefatos de uso diário, peças de artesanato e literatura, frutas e legumes da terra, além do próprio povo visto no seu convívio cotidiano. É o local onde ele se sente tentado a desenvolver as habilidades de “etnógrafo amador”, como diz, para definir as contribuições étnicas que fizeram surgir uma cultura tão rica na sua diversidade.
Em suma, pode-se dizer que, mesmo dominados pela afetividade, seus escritos são de grande relevância para o entendimento da imagem do Brasil que o estrangeiro constrói a partir de seu contato com nossas terras, além de revelarem o modo como nós brasileiros construímos nossa imagem perante o outro.

3. RETRATO POÉTICO DE UM ESPAÇO BRASILEIRO

Para mostrar um pouco da visão de Nemésio sobre as terras brasileiras, este artigo apresentará a análise do poema “No cemitério de Santa Efigénia de Ouro Preto”, que abre a parte intitulada “O segredo de Ouro Preto”, do volume de crônicas O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos. Pela forma como a obra está estruturada, esse texto poético acaba se configurando numa espécie de crônica em verso pelos seguintes motivos: assim como os textos em prosa, ele recebe numeração, o que não ocorre com os poemas do “Romanceiro da Bahia”, inclusos no volume; ele apresenta a descrição de um dos lugares visitados pelo autor e as reflexões que essa visita lhe suscitou, como ocorre nos textos em prosa, diferenciando-se deles pela estrutura formal e por uma fragmentação maior, além de um trabalho apurado na elaboração das imagens.
O poema em questão delineia o trajeto histórico da região de Ouro Preto, antes Vila Rica, desde a chegada dos exploradores que buscavam as riquezas minerais à configuração do moderno espaço urbano. Vejamos, pois, como esse trajeto é construído:

      I
No cemitério de Santa Efigénia de Ouro Preto

Em Belo Horizonte um dia
Transtornei sangue e destino
Em rubis imaginários.
Com pretextos de cristal,
Concreto, talhava o povo
Castelos de apartamento.
A Babel de lumes sobe
Na rosa dos ventos leves.
Sumido o oiro das catas
10    Brilham janelas perdidas,
Torna-se a alma um segredo;
O Curral de El-Rei cerrou-se,
Vestem de plástico as virgens,
Os matos ardem de medo.
Mas já não sei que alegria
Suspende a cidade abstracta
Dos engenheiros velhinhos
Em suas faces de iodo
Que Afonso Pena convoca...
20    Afonso Pena, que um dia
Minha avó regou de lágrimas
No selo berilo e rosa
Da carta do filho ausente.
Há tanta surpresa, tanta,
Nos caminhos deste mundo,
Que vivo a esperança de outrora
Como urubu estampado
Nos calvários de Ouro Preto.
Ó céu de Belo Horizonte,
30    Que futuro me daria
Teu movimento secreto?
O caçador de esmeraldas
Enforcou o filho espúrio
Num ipé do Sumidoiro.
Da cobiça e do perjúrio
Fez o tempo a ingenuidade
Das moças da terra de oiro.
Minando-me estava a tarde
Que faísca nas vidraças
40    Intimidade e desígnio;
Minas Novas abro n’alma
Com cuidados de Dirceu:
Quanto a Marília – talvez
Fosse florinha pintada
Por algum negro, no céu.
Lembro-me tanto de tudo!
Cerra-se-me a vida ao espelho
Que o destino humano tolda
Naquele cemiteriozinho
50    De Santa Efigénia núbia,
Todo flores e cruzes toscas.
Silêncios do sol mineiro
Guarda a lâmpada de prata
Na pobre igreja esquecida;
É tudo tão justo e humilde
À flor da terra mulata!
Ali jazem de Ouro Preto
Pobres pepitas humanas;
A morte sacode as vidas
60    Como as escravas pó de oiro
Nas piinhas de água benta;
Rompe o sorriso dourado
Das mortas na flor dos anos,
Dos velhos de olhos cansados
Que coram nas trepadeiras
Dos murinhos de pilão;
Restos de antigos caixotes
Seguram num breve nome
A memória e o chamamento:
70    No mais, o olvido perpétuo
Sopra na chama das flores
Melhor que se fosse vento.
Assim aprendo a jazida
De Valdomiro Filipe
Entre rosa e samambaia;
A de Maria Profeta
(“Orai por ela”) espigada
De branco num cato-lança;
“Descansa na pás de Deus”
80    (Com seu s) “Rute Albana”,
Ou seu túmulo é a lata de água?
Rute escondeu-se; descansa.

Cemiteriozinho negro
De Santa Efigénia núbia,
Fica no canto dos pássaros,
Nos letreiros de caixote,
Nas flores do mato queimado,
Na filomela metálica
Da banda de António Dias
90    Que trila um Chopin funéreo
Com sons de pedra-sabão.
Os dedos do Aleijadinho
Nas flores das campas mulatas
Lhe recompõem a mão.
 
“Aqui dorme o sono eterno
O pequeno Elci”. Seria
Que eu tivesse a paz tão longe
E, perto, a não merecia?

A princípio, é curioso que, para iniciar seu percurso pelas cidades históricas mineiras, no primeiro volume que dedica ao Brasil, Nemésio tenha escolhido falar de um cemitério, justamente um reservado ao grupo social menos favorecido do período colonial, os escravos. Qual a razão disso? Estaria ali o “segredo de Ouro Preto”, que intitula a parte dedicada a Minas Gerais e está no título da obra?
Em 98 versos em redondilhas maiores, o eu-lírico faz um trajeto que começa em Belo Horizonte e termina no “cemiteriozinho”, termo que, enquanto revela suas pequenas dimensões, denota a afetividade com que o espaço será tratado. Os primeiros 23 versos são dedicados à construção da nova capital, inaugurada no ano de 1897. Falando dela, o primeiro verbo usado surpreende o leitor. A idéia de “transtornar” “sangue e destino” em “rubis imaginários” expressa, de um lado, um sentimento de perturbação do eu – que tem repercussões no final do poema, como se verá – e, de outro, o desarranjo de uma ordem preexistente. Elementos ligados à vida humana são de repente transfigurados ou “transtornados”, como quer a voz poética, em pedras preciosas imaginárias, pedras que têm a cor do sangue, este que, juntamente com o destino, move o homem a realizar obras que, muitas vezes, superam as possibilidades do fazer num determinado momento histórico.
O “sangue e destino” daquele povo talharam os “castelos de apartamento” da “Babel de lumes”, apartamento que pode ser considerado num duplo sentido: o do tipo de habitação nos edifícios modernos e o de distanciamento, já que a nova capital afasta-se da antiga tanto no aspecto temporal como no modelo arquitetônico moderno que substituirá o do Brasil-colônia.
Segue-se uma menção à decadência das regiões auríferas. Com o esgotamento das minas, o que se vê no presente são apenas “janelas perdidas” que brilham, isto é, os resquícios de um passado áureo que permaneceu na arquitetura; e a alma “torna-se um segredo”. Que segredo seria este? Seriam as reminiscências do período em que a região foi ocupada e a sede do ouro gerou, por um lado, riqueza e belas realizações artísticas, mas, por outro, guerras e mortes?
Continuando o percurso do poeta, a seguir, as etapas para erguer a nova capital são fragmentariamente apresentadas: fechamento do “Curral de El-Rei” – região onde a cidade será erguida e que tomará o nome de Belo Horizonte –, a proteção às imagens contidas nas igrejas para que não sejam danificadas – “Vestem de plástico as virgens” –, as queimadas para limpar a área – “Os matos ardem de medo” –, a convocação dos “engenheiros velhinhos/ Em suas faces de iodo” – imagem que contrasta com o ideal de modernidade que a nova urbe incorpora, mas que realça a experiência na qual a construção desta estará fundada – pelo então presidente da província, Afonso Pena. Nesse ponto, o eu-poético estabelece uma ligação entre seu destino e o daquela terra em transformação, justapondo às imagens mencionadas a da avó que rega de lágrimas a “carta do filho ausente” emigrado, cujo selo representa a figura do político mineiro3 .
Logo depois, a voz poética fala em “surpresa”. Esta parece se referir tanto ao entrecruzamento de destinos que faz que Açores e Minas Gerais se aproximem através da presença do emigrante, como ao desconcertante choque do passado com o presente que a visão de Ouro Preto faz surgir – “Que vivo a esperança de outrora/ Como urubu estampado/ Nos calvários de Ouro Preto”. O eu aqui experiencia as duas épocas: a primeira, quando a descoberta de ouro na região gerou esperanças fundadas na riqueza e no progresso, e a segunda, que desvenda as tristes consequências daquele acontecimento.
Segue-se um outro mistério: o “movimento secreto” do “céu de Belo Horizonte”, que futuro sugere ao eu-poético? Percebe-se que este se move através dos tempos passado e presente como que buscando as respostas para o futuro. E então ele se volta novamente para o passado, tomando um episódio de grande violência e sofrimento que marcou a história do desbravamento do interior mineiro na busca pelas pedras e metais preciosos. Trata-se da sentença de enforcamento que Fernão Dias deu ao próprio filho por este liderar uma rebelião contra sua obstinada busca por esmeraldas. Porém, o tempo, remédio para todos os males, transformou a cobiça e o perjúrio, que foram os móveis daquele trágico conflito, na “ingenuidade/ Das moças da terra de oiro”, e com isso o eu-lírico mostra que o tempo é capaz de fazer aflorar coisas boas de grandes males. E assim, a próxima imagem será marcada pela beleza, pela arte. A tarde vai lhe trazer a visão de “Minas Novas”, um sítio da região mineradora, mas que, no poema, parece ser a representação de uma outra faceta da terra, nova para o eu-poético – a artística. Surgem-lhe Dirceu e sua amada Marília, que deixou de ser a musa pintada em verso pelo português de nascimento Gonzaga e transfigurou-se na “florinha pintada/ por algum negro, no céu”, o que a aproxima do contexto de uma arte que floresceu em meio às agruras da escravidão.
O verso “lembro-me tanto de tudo!” perfaz novamente a ligação entre passado e presente. Nesse instante, os fragmentos da vida de outrora subitamente se refletem no espelho como imagem do “cemiteriozinho/ De Santa Efigénia núbia” e seus pobres túmulos marcados pelas “cruzes toscas”. Nesse local humilde também se esconde um segredo: os corpos dos escravos que morreram para que Ouro Preto fosse, no século XVIII, uma região de progresso e opulência. A morte os transformou em “pobres pepitas humanas”, ali atiradas como o pó de ouro que as escravas traziam das minas grudado aos cabelos ou às roupas e ao corpo e sacudiam nas pias de água benta. Este ouro e as doações de Chico Rei contribuíram para a alforria de muitos cativos e para a construção da Igreja de Santa Efigênia, que pôde contar com o trabalho de artistas de renome da época (os altares foram projeto de Manuel Francisco Lisboa e a capela-mor, de Xavier de Brito) e pôde, ainda, ser ornada com objetos de valor – por exemplo, a “lâmpada de prata” de que fala o verso 53 – como as igrejas dos brancos.
Desse modo, apesar de a vida daqueles homens e mulheres que tanto trabalharam para o enriquecimento alheio parecer inútil, ela acabou ganhando sentido através da igreja e do cemiteriozinho, que são, por um lado, as provas históricas de uma existência sofrida, e, por outro, a certeza de que a arte também surge em meio à miséria, tornando-se símbolo da grandeza humana daquela gente. Por isso, os que ali jazem podem expor o “sorriso dourado”, já que a vida de sacrifícios e tormentos não foi inteiramente vã ao deixar um registro de beleza para a humanidade.
A imagem que identifica o cemiteriozinho, entretanto, é a de uma simplicidade que se mistura ao menosprezo, já que os nomes se fixam em cruzes de caixotes, sendo este o único vestígio de um existir marginal, cuja morte levou ao “olvido perpétuo”. O eu reverte essa situação citando alguns daqueles nomes, o que os tira do triste anonimato, dando-lhes, através da poesia, o lugar de direito na história, que lhes foi negado em vida. Ele fala então da “jazida de Valdomiro Filipe”, de “Maria Profeta” e de “Rute Albana”, jazida no duplo sentido de lugar onde se encontram os restos mortais e de depósito de material valioso. Ele aponta ainda detalhes dos túmulos, como a palavra “pás” no lugar de “paz” no de Maria, e a lata de água esquecida no de Rute, acentuando a humildade dos mortos e também a dos vivos que deles cuidam.
Após esse longo bloco constituído de 82 versos, aparecem outros dois, um com 12 e outro com apenas 4 versos. No segundo bloco, ou estrofe, há a transfiguração do cemitério, que é elevado ao plano artístico pela menção de cores, sons e matéria escultural, pois, se os escravos conseguiram fazer arte de sua miséria, o mínimo que o viajante poderia fazer era também converter em criação artística os resquícios da escravidão com os quais se defronta. Assim, o eu-poético mescla natureza e arte – “canto dos pássaros”, “flores do mato queimado”, “filomela metálica [...]/ Que trila um Chopin funéreo/ Com sons de pedra-sabão” – valorizando aquele ambiente que, simples e rude, sublima-se em presença da arte. Nos três versos finais dessa estrofe, surge uma bela imagem: o Aleijadinho, que viu seus dedos destruídos através de anos a fio esculpindo figuras grandiosas que adornam as igrejas da região, poderia vê-los reconstituídos num trabalho mais humilde, com as “flores das campas mulatas”, já que, aquela terra adquiriu poderes milagrosos ao ser enriquecida pelas “pepitas humanas”.
A última estrofe faz referência ao “pequeno Elci”, talvez um anjo negro que ali descansa em meio às almas que se libertaram da escravidão. A reflexão que surge ao final é, contudo, enigmática: por que o eu não mereceria a paz que ele sente tão próxima? Que sentimento o perturbaria em recanto que sua visão de poeta elevou à condição de arte? A análise do poema aponta para uma série de pares antitéticos, tão característicos das criações artísticas barrocas, sobre as quais a representação não só de Ouro Preto, mas da região das minas, de maneira geral, foi construída: o antigo e o moderno, o passado e o presente, a vida e a morte, o bem e o mal, a riqueza e a pobreza, o sofrimento e a paz, o belo e o feio. Contudo, é interessante observar que cada um dos elementos é imprescindível à existência do outro: do mal surge o bem, da morte a vida ou vice-versa, o que revela uma crença otimista na superação dos sofrimentos passados. Apesar disso, o cemitério – sobretudo o túmulo de Elci – dá ao viajante a consciência da tragédia do negro escravizado para o enriquecimento do colonizador branco, e nem as belas edificações religiosas, nem o trabalho artístico que cerca a cidade conseguem evitar que ele se sinta “transtornado” e melancólico diante das evidências do mal que o segundo causou ao primeiro. Distante do “cemiteriozinho”, ele vivia alheado às consequências de um processo colonizador desumano, podendo, então, sentir-se em paz; diante dele, no entanto, é impossível não reviver a tragédia da escravidão, e o eu tem a certeza de que não merece esta paz.
E o segredo de Ouro Preto, que se destaca no título da obra, onde estaria? Na verdade, ele está nessas contradições e no que delas surgiu: de um lado, o espaço de elevação e beleza que a arte proporcionou, de outro, a certeza de que a história colonial foi marcada pela barbárie e pelo sofrimento.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Certamente, o poema aqui analisado é um registro indubitável do talento de Vitorino Nemésio, poeta que soube aliar erudição e sensibilidade poética para criar obras de grande valor literário a partir de temas do cotidiano, da história e da cultura popular. Tanto sua poesia como sua prosa revelam um sentido de valorização das manifestações artísticas do povo mais simples, como dão prova os poemas e crônicas que ele produziu a respeito das terras açorianas e de seu povo. É curioso notar que o mesmo tratamento afetivo que ele dedicou à terra natal também pode ser encontrado nos escritos brasileiros, que são prova da admiração que ele nutriu por este país durante toda a sua vida.
Sem dúvida alguma também, os poemas e crônicas de Vitorino Nemésio sobre o Brasil privilegiam a harmonia racial e as qualidades da terra, embelezando ou simplesmente deixando de mencionar os elementos negativos, remetendo ao imaginário do Brasil-Paraíso terrestre que veio sendo forjado desde a Carta de Caminha. Consideradas sob esse ângulo, as representações nemesianas não iriam além da reprodução de certo discurso eurocêntrico sobre nossa terra, formulado desde os primórdios da colonização. Contudo, pode-se perceber que, na verdade, o autor português captou certo modo de ser que nós brasileiros transmitimos e que é parte da nossa essência como povo. No percurso histórico da construção da nossa identidade, a edenização do Brasil foi uma faceta que nós assumimos como parte de nosso caráter nacional (exemplos disso são encontrados nas artes plásticas, na literatura e na música brasileiras), faceta à qual Nemésio jogou luz nas criações que realizou sobre nosso país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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CORTESÃO, Jaime. A Carta de Pêro Vaz de Caminha. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1999. (Obras Completas – 7).
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 2a. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
NEMÉSIO, V. Obras completas Vol. I e II – poesia. Pref., fixação do texto e notas de Fátima Freitas Morna. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1989.
-------------------. O segredo de Ouro Preto e outros caminhos. Lisboa: Bertrand, 1954; Obras Completas Vol. XV. 2a. ed. Introd. de Margarida Maia Gouveia. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998.
------------------. Caatinga e terra caída. Viagens no Nordeste e no Amazonas. Lisboa: Bertrand, 1968. Obras Completas Vol. XX. 2a. ed. Introd. de Margarida Maia Gouveia. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998.
SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo na Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.

1. Professora doutora pela USP; Professora Associada da Faculdade de Tecnologia de São Caetano do Sul.
2. Essas informações constam das notas de Fátima Freitas Morna às Obras Completas Vol. I e II – poesia, de Nemésio.
3. Essa construção reaviva a imagem presente no “Romance do Emigrante”, que trata justamente daquele que deixa sua terra para estabelecer-se em outra na busca de melhores condições de vida. Este é um sentimento muito presente em Nemésio, ele próprio um migrante, que deixou os Açores ainda muito jovem, estabelecendo-se no Portugal do continente, onde adquiriu sua formação acadêmica. Mais tarde, devido às condições de seu trabalho, virou cidadão do mundo, fixando-se temporariamente em outros recantos da Europa e fazendo viagens à América e à Africa.