Operar humano como peculiaridade da arte na estética de Luigi Pareyson
Íris Fátima da Silva1
Resumo: descortinar alguns aspectos da ontologia hermenêutica de Luigi Pareyson é o propósito do presente texto. Ressaltar-se-á aqui breves considerações acerca do significado da hermenêutica que nos apresenta o autor na sua Estetica. Teoria della formatività, onde a interpretação da obra de arte é inseparável da execução da obra em si. Todo operar humano é sempre e respectivamente Receptividade e Atividade. A pessoalidade desvenda a obra, revela-a, reflete-a como se o sol adentrasse numa sala escura. A interpretação é em si sempre pessoal; mesmo que seja apenas uma das tantas possíveis. A possibilidade da pluralidade das interpretações não anula a sua singularidade; ao contrário, é por si só uma revelação da amplitude do pensamento humano. Ao se conceber a interpretação como singular, evidencia-se a historicidade do contexto e a personalidade do pensante. É neste âmbito que investigaremos os conceitos de operar humano na Estética de Pareyson.
Palavras-Chave: Luigi Pareyson, Hermenêutica, Estética, Operar Humano.
Abstract Unravel some aspects related to the Luigi Pareyson’s hermeneutic ontology is the purpose of the current text. Brief considerations about the meaning of the hermeneutic the author presents on the Aesthetic will be highlighted. Formativity’s theory is where the interpretation of the artwork is inseparable of the execution of the work itself. All human operation is always and respectively Receptivity and Activity. The personal interpretation unveils the work, reveals it, reflects it as if the sun was entering a dark room. The interpretation itself is always personal; even if it is just one among the many possible. The possibility of interpretations plurality does not cancel its singularity; on the other hand, is for itself a revelation of the human thought amplitude. As you conceive the interpretation as singular is evidenced the context historicity and the thinking personality. It is on this sphere we’ll investigate the concepts of human operate on the Pareyson’s aesthetic.
Keywords: Luigi Pareyson, Hermeneutics, Aesthetics, Human Operate
No presente texto enfatizaremos dois pontos fundamentais no âmbito do operar humano no pensamento de Luigi Pareyson 2. O primeiro ponto parte do princípio que todo operar humano3 é sempre e simultaneamente Receptividade e Atividade. O segundo ponto, imprescindível segundo Pareyson, é que todo operar humano é sempre pessoal. Ao que se refere ao primeiro ponto, o autor explica que o operar humano caracteriza-se pelo fato de que todas as atividades da pessoa remetem sempre a um estímulo, a uma proposta, a um ponto de partida que comporta o próprio início e revela a receptividade da qual são características.
Nem receptividade absoluta, nem absoluta atividade, nem passividade nem criatividade. De acordo com Pareyson Receptividade e Atividade são indissociáveis no operar humano porque se constituem em um acontecimento. “Isto que constitui a receptividade como tal, e impede que seja passividade determinista, é a mesma atividade que acolhe e se desenvolve: só é receptividade aquela que se prolonga em atividade. Especulativamente, a atividade é tal só como desenvolvimento e prolongamento de uma recepção: não há atividade sem receptividade” (PAREYSON ETF, 2005, p, 181). Vale ressaltar, no entanto dois aspectos presentes na pessoa4 : a totalidade e o desenvolvimento. A pessoa é uma totalidade infinita e definida, fixada em uma singularidade própria, dotada de uma validade concluída e reconhecível num instante qualquer. Por outro lado, em outro momento, a pessoa é distinta e contém uma abertura para novas possibilidades de contestações e re-elaborações, de revisões e retomadas de velhos motivos e de novos atos. Por um lado a pessoa é a obra que faz de si mesma, acabada, concluída e definida a cada instante, por outro lado é uma obra em desenvolvimento aberta para requerer e exigir novos atos e novos desenvolvimentos. [...]“como totalidade a pessoa é obra e como desenvolvimento a pessoa é operar” (PAREYSON, ETF, 2005, pp. 183-184). O autor afirma também que formas5 são as pessoas se fixadas em um instante do seu desenvolvimento, isto é, a pessoa é em algum dos seus momentos uma obra concluída e definida: com efeito, a pessoa fixada em um dos seus instantes, firmada nos seus incessantes processos de desenvolvimento, individualizada em um dos seus atos que a recolhe e a condensa, é o resultado de todo um operar: é uma obra definida. Se a pessoa é forma e se todo operar humano é sempre pessoal, há um caráter duplo no operar humano, por um lado tende a tornar evidente a forma e por outro exprime a totalidade da pessoa (PAREYSON, ETF, 2005, p, 184).
Segundo Pareyson, forma significa, por um lado, fazer, produzir, realizar e por outro, inventar o modo de fazer. O processo artístico contém em si mesmo um prognóstico da obra, no entanto “a forma só existirá quando o processo se concluir e chegar a bom termo”(PAREYSON, ETF, 2005, p, 180). De acordo com Pareyson “toda operação humana é sempre expressiva, no sentido que é sempre acompanhada pelo sentimento, e brota sempre daquele primeiro olhar da interpretação, daquele sentido das coisas, daquele especial modo de ver, que é característico da singularidade da pessoa”. (PAREYSON, ETF, 2005, p, 184). A forma nasce na pessoa, isto é, a partir da pessoa e naturalmente traz consigo o próprio processo de formação. O autor cria uma forma singular e esta forma só existe primeiramente a partir do olhar do próprio autor. Com efeito, Pareyson chama atenção para o que se segue, isto é, é preciso ressaltar, além da essencialidade personalista, a simultaneidade de Receptividade e Atividade, conceitos fundamentais para explicar o conceito de interpretação na teoria da formatividade. O conceito de “forma” é bastante enfatizado e reinterpretado na cultura estética do século XX; está implícito no conceito de forma a referência a algo de objetivo e de estável, que parece adequar-se à essência da obra de arte, diante de aspectos pertinentes da contemporaneidade.
Definitivamente toda realização humana é inovadora e criativa para Pareyson, a formatividade dá-se no operar humano, não necessariamente só na obra de arte. De acordo com Pareyson, a singularidade da forma está no que ela pode se tornar, na sua proposta, no que poderá ser alcançado. Naturalmente, Pareyson nos lembra que a obra não se faz por si só. O seu “desvelar-se” mostra-se, torna-se evidente no entendimento da formatividade como o resultado de um processo entre forma-formante e o fazer artístico, vislumbrando a forma-formada. O apelo à forma manifesta o impulso para a superação da própria forma, no sentido que renovando-a ciclicamente, permanece sempre igual a si mesma de modo que se pode dizer, talvez, que a herança da estética da forma novecentista nos aponta uma fenda entre a divinização da forma e a sua demonização, entre a exaltação do belo e o seu denegrimento, entre idolatria e iconoclastia, o que nos obriga a considerar que o conceito ocidental de forma não é unitário, é paradoxal, contém em si vestígios da confluência, no mesmo termo, de duas noções que, para os Gregos antigos, eram semanticamente bem distintas .
Pareyson apresenta uma das razões profundas do interesse real, vivo, que o homem nutre pela arte, exaltando as inúmeras possibilidades da atividade formativa, isto é, aprofunda o aspecto essencialmente realizativo e comunicativo, no qual se conciliam aspectos singulares da própria natureza humana. É na arte e com a arte que se dá a origem do fato de que toda vida do homem, pelo seu intrínseco exercício de formatividade assemelha-se à obra de arte, é um prenuncio do caráter de independência e originalidade da sua própria existência (PAREYSON, ETF, 2005, p, 276). Não obstante, entender uma obra de arte, não significa expressar um significado que transcende o seu corpo físico. A obra não é um simples meio, ou um mero veículo cognoscitivo à espera de explicitação; seria como se compreender fosse antever a sua insondável realidade física e espiritual. Ao contrário, interpretar, dialogar com o inusitado é o apelo originário da obra de arte, dado o seu caráter fundador, revelador de um mundo que nasce com ela, isto é, comporta-a na sua mundanidade como nexo que subsiste entre a ontologia hermenêutica de Pareyson, pensada como abismo que dá origem à obra de arte. Como a obra é a origem das suas execuções, assim a pessoa é a origem inexaurível das suas interpretações e o ser é a origem da compreensão do ser.
Na sua investigação sobre o problema da especificação da arte, Pareyson chama atenção para a constatação de que a “estética é reflexão filosófica sobre a experiência estética” (PAREYSON, ETF, 2005, p. 18). No entanto, isso não significa cair em ciclicidade, haja vista a estética tomar os movimentos da experiência propriamente, a qual, se devidamente interrogada, ela mesma mostrará e denunciará, no seu vasto âmbito, os aspectos ou as zonas que têm um caráter estético ou artístico. Ao comparar a arte com qualquer outra atividade, não se alcançará nunca uma definição como operação específica se a inteira experiência não tivesse já ela mesma um caráter de esteticidade e artisticidade. No âmbito da operação própria dos artistas, a arte não pode resultar a não ser da acentuação intencional e programática de uma atividade está presente na experiência humana por inteira, e que acompanha, a propósito, constitui cada manifestação da operosidade personalista.
Por conseguinte, esta atividade, que direciona o experimento e que, se oportunamente especificada, constitui aquilo que normalmente chamamos arte, isto é, formatividade, entendida como movimento mesmo, nos conduz a investigar em Pareyson o que significa dizer que todos os aspectos da operosidade humana dos mais simples aos mais articulados apresentam um caráter essencial de formatividade (PAREYSON, EFF, 2005, p. 18). O problema nos remete a perguntar o que está por traz das coisas do cotidiano? A experiência estética lida com a singularidade de uma forma. Pareyson nos chama atenção para o caráter concreto da estética. A relação da experiência estética com a experiência concreta é inseparável, de forma que a especulação sem base na experiência torna-se abstração estéril, ao mesmo tempo em que, a análise dos objetos estéticos sem o aprofundamento filosófico torna-se mera descrição.
A estética da formatividade de Pareyson define a arte como um legítimo êxito de uma atividade modeladora, plasmadora e especificamente própria da forma artística, o que caracteriza o cerne do seu conceito de autonomia da arte, desenvolvendo uma estética de âmbito especialmente ontológico. Pareyson pretende evitar o labirinto das teorias que se perdem tanto na exaltação de formalismos abstratos, quanto no ponto de partida de um suposto conteúdo da obra de arte o qual não têm como explicar a passagem decisiva do conteúdo em si ao plano da arte. Mas o que Pareyson de fato entende por forma artística e sobre como esta se especifica? Em arte, explica ele, a forma se especifica como um legítimo êxito, isto é, como conclusão de um processo cuja única condição de êxito é o próprio amoldamento a si mesmo e a nenhum outro fim ou valor externo.
Segundo Pareyson a particularização formativa não subentende a atividade isolada de uma formatividade vazia, (isto não seria possível, considerando-se que a pessoa se faz sempre presente em todos os seus atos), mas, ao contrário, requer, para a sua sustentação, toda a plenitude da vida espiritual de quem a opera, toda a sua vontade expressiva e comunicativa, traduzidas em modo de formar. É assim, portanto, quer dizer, já como componente orgânico da obra de arte, que o mundo do artista se faz presente na obra. Esse conceito de modo de formar permite entender o caráter auto-referencial do discurso artístico, enquanto discurso originador, que se constitui não somente como discurso sobre, mas, primordialmente, como fundador de uma linguagem e, portanto, de um mundo próprio que com ele se origina. O discurso primordial de uma obra de arte é, pois, aquele que ela faz dispondo suas formas de um modo específico — e não simplesmente o conjunto de juízos que ela eventualmente pronuncia sobre determinado assunto. No seu conteúdo legítimo revela-se, então, o seu próprio modo de formar, enquanto modo de ver a realidade e de atuar sobre ela. É desse prisma que Pareyson teoriza a questão da autonomia da arte e das suas relações com a realidade (PAREYSON, ETF, 2005, p, 246).
No entanto, de acordo com Pareyson a forma artística, é, essencialmente, matéria formada. Dizer que a forma é matéria formada significa dizer que ela é, de per si, um conteúdo, um "conteúdo expresso". Para usar o termo de Pareyson, na forma artística tudo está carregado de significação, até as inflexões estilísticas mais discretas, enfim, tudo é significado. Dizer, pois, que a forma é matéria formada é o mesmo que dizer que ela é coincidência perfeita de forma e conteúdo: matéria formada é matéria humanizada, espiritualizada, impregnada de significado e de expressividade. Observe-se que essa identidade não é apenas entre forma e conteúdo, mas entre forma, entendida como matéria formada, e conteúdo, entendido como conteúdo expresso, o que pode ser traduzido em uma fórmula bastante ilustrativa: forma = matéria formada = conteúdo expresso. A analogia dá-se devido ao propósito que tudo que integra, especificamente; a composição da forma artística já está ali contida no gesto formativo do artista e em submissão à lei orgânica que presidiu todo o processo. A obra de arte apresenta-se, então, como uma contração orgânica de valores diversos, dotada de legitimidade interna, de autônoma consistência e, ao mesmo tempo, de uma fundamental ligação com a realidade de onde brota. Vale dizer, ela já insurge de suas posições com uma particularização própria (PAREYSON, ETF, 2005, pp, 46-47).
Ainda no âmbito da forma artística esta se apresenta como resultado de uma gênese formativa que ela mesma dirige e que nela se inclui de modo indestrutível. Esse acabamento, evidentemente, não é algo que se acrescenta (como acontece, por exemplo, quando se faz consistir o problema artístico em dar uma forma estética a um dado conteúdo), mas subentende uma teleologia interna, explicada por Pareyson como uma atuação da própria obra como formante, bem antes de se concluir como forma formada. Entenda-se que o procedimento da arte contém em si mesmo a própria direção, porque o tentar, não sendo nem preventivamente regulado nem abandonado, é por si só orientado pela passagem da obra a qual comanda, define. A antecipação da forma não é propriamente um conhecimento preciso e uma visão clara, porque a forma existirá somente com o processo concluído e executado, não se trata de uma vaga sombra ou uma idéia infecunda. Trata-se verdadeiramente de um presságio e de uma divinização, na qual a forma não é encontrada e colhida, mas intensamente atendida e esperada (PAREYSON, ETF, 2005, p, 75).
Em suma, Pareyson institui um vínculo efetivo e indivisível entre os três momentos basilares da experiência da arte: a gênese, a forma acabada e a interpretação. Interpretação, em Pareyson, é definida como: “uma forma tal de conhecimento na qual, por um lado, receptividade e atividade são inseparáveis, e, por outro, o conhecido é uma forma e o conhecedor é uma pessoa” (PAREYSON, ETF, 2005, p, 18). Os referidos momentos são períodos que se interligam na obra mesma, ao passo em que esta, no ato mesmo em que se mostra como fim de um processo formativo, revela-se como abertura para inexauríveis interpretações, atuando como lei diretora, em primeiro lugar para o autor, e, posteriormente, para o intérprete. Todavia, a importância desse atrelamento íntimo obriga-nos a outra consideração imprescindível, a saber, a forma artística, bem mais do que ser expressão de um mundo acabado, é, na sua essência, um começo, uma fenda permanente ao diálogo, em virtude de ser uma fonte perene de significados, propícios a iluminar, de modo sempre renovado a realidade à sua volta e de transformar qualitativamente o lugar do homem e das coisas no interior dessa realidade. De acordo com Pareyson a autonomia da obra de arte é um traço distintivo dela mesma, intrinsecamente ligado à sua particularidade como arte.
Pareyson ressalta três aspectos fundamentais para a sustentação teórica dessa autonomia, a saber: a) Identidade de forma, matéria e conteúdo, na obra de arte; b) Alteridade da obra diante do seu autor e do seu tempo, enquanto se apresenta, ao mesmo tempo, como lei e resultado do seu próprio processo de formação; c) Acabamento e polaridade contínua, isto é, a forma acabada mostra-se, não como resultado (o que faria dela um mero objeto de explicitação), mas como abertura para um fluxo inesgotável de interpretações. Destaca-se, então, o argumento pareysoniano de que a obra de arte brota com um preciso condicionamento, mas já explicitada como arte. Isto é, a forma estética surge com uma especificação formativa, pode-se dizer nasce já como "conteúdo expresso". O seu poder de exercer esta ou aquela função, o seu potencial revolucionário e libertário, enfim, são decorrências dessa autonomia e não fatores determinantes em relação à mesma. Não obstante, pode-se perguntar, se a obra de arte pode desempenhar tais funções, sem com isso se comprometer na sua autonomia e no seu valor artístico?
Nesse âmbito, Pareyson nos apresenta uma possibilidade hermenêutica e ontológica importante, não apenas com o propósito de permitir um olhar direcionado ao fenômeno arte e uma aceitável concepção da sua autonomia, mas, sobretudo pela razão do apontar a possibilidade de se repensar, sobre alicerces mais consistentes, o problema do estatuto ontológico da arte, enquanto alteridade irredutível, não dedutível e não explicável por condições preexistentes. A tal propósito, em meu parecer, incide uma das contribuições mais significativas da ontologia estética de Pareyson. As idéias estéticas se desenvolvem a partir da hermenêutica. Para Pareyson, a obra de arte está sempre "em construção", desde o início, antes da sua forma física quando existe apenas enquanto vontade "informe" de criação, ela já se encontra em um processo interpretativo por parte do artista. A interpretação permanece em todas as etapas da sua existência no mundo, frente a cada pessoa que entre em contacto com a obra. A obra mostra-se, define-se singulamente nessa presença em face a uma interpretação. Quando a obra não é pensada, relacionada, discutida, ela deixa de ser obra. Ressalta-se mais uma vez que a obra está em constante "formação".
Pareyson atribui à formatividade um caráter interpretativo por excelência, a esfera peculiar de entendimento do mundo, geradora de uma legalidade própria é um dos elementos que garantem a autonomia da arte mesmo que para Pareyson nem todo fazer é formativo. Na estética pareysoniana, o autor inventa a obra e sua legalidade interna a partir do spunto , que, significa o ponto de partida da forma e surge a partir de um olhar formativo diante do mundo, o que gera uma relação simultânea de atividade e receptividade entre artista e obra. Nesse momento, artista e obra já dialogam em busca do êxito da obra, que é entendida como forma, ou seja, interage com o artista e exige o seu próprio desenvolvimento. Essa exigência de desenvolvimento da obra só se opera dentro e através da ação formativa do artista. O spunto7 já contém a noção do êxito, ainda que nebulosa. Se no fazer a relação entre o fim e a atividade que o persegue é baseada em regras de cuja correta aplicação garante o resultado, no formar, ao contrário, estas mesmas regras devem ser a cada vez inventadas e redescobertas, no sentido de que, também quando são dadas, se trata sempre de tirar do processo em ato e conceber, figurar, inventar no momento mesmo em que já está aplicando. Por isso a formatividade é caracterizada pelo fato de que a obra que dela deriva não é tanto “um resultado” quanto “um êxito”, ou seja, algo que encontrou a própria regra, reconhecendo-a como tal. Ela tem sim, um caráter produtivo, executivo, realizativo, mas também inventivo e figurativo; aliás, produção e invenção, na formatividade, procedem simultaneamente.
Com isto a teoria da formatividade traz à luz o elemento estético que é a base do fazer do homem, quando este fazer, seja propriamente humano, a saber, não meramente executivo, mas com os caracteres da inventividade e da formação. A vida prática em seu nível superior, assim como a vida espiritual em geral, dita artisticamente orientada, o recorda a linguagem, que reconhece uma fundamental disposição artística em atividade, por exemplo, não só de artesanato a propósito da produção não meramente mecânica, mas também de “arte da memória”, “arte da guerra”, arte do saber viver, etc. Todavia, não há um quê de artístico, sempre, lá onde um homem olha para um fim e não pode proceder senão por tentativas, logo pondo à prova a possibilidade que de vez em quando surge até encontrar aquela boa e reconhecer, pois, que o pressentimento daquela possibilidade, e não uma fórmula predisposta, o guiava. E se as outras operações podem dizer-se alcançadas só se ratificadas de uma legalidade e por uma finalidade à qual elas se submetem preventivamente, a arte, ao contrário, não conhece outra lei que a que ela mesma se dá , nem outro fim que o de conseguir adequar-se a si mesma. Para as outras operações vale o princípio que “o único modo no qual a obra se deixa fazer é aquele no qual, conforme as leis da atividade exercida, se deve fazer”, enquanto no caso da arte “o modo no qual se deve fazer a obra não é senão o único modo no qual ela mesma, que tem de ser inventada e ao mesmo tempo feita, se deixa fazer” (GIVONE, 1990, P. 155).
Nesse âmbito, Pareyson nos apresenta uma possibilidade hermenêutica e ontológica importante, não apenas com o propósito de permitir um olhar direcionado ao fenômeno arte e uma aceitável concepção da sua autonomia, mas, sobretudo pela razão do apontar a possibilidade de se repensar, sobre alicerces mais consistentes, o problema do estatuto ontológico da arte, enquanto alteridade irredutível, não dedutível e não explicável por condições preexistentes. A formatividade não só reflete o conteúdo, mas o torna irreduzível, específico, como modo de formar, como modo feito forma, como estilo. É neste ponto que a arte revela ser um acontecimento essencialmente interpretativo, e ao mesmo tempo um evento de finalidade ontológica. É um episódio interpretativo, porque os seus produtos, gerados pela interpretação que o artista dá da própria matéria, não vivem senão na interpretação; pode-se relembrar o legado hermenêutico que é o processo artístico. No processo de produção o artista continuamente julga, avalia, aprecia sem saber de onde verdadeiramente provém o critério das suas avaliações: no entanto, sabe que o bom êxito é muito importante, deve operar segundo apreciações assim orientadas, e só a obra feita possibilita direcionar o olhar para traz e entender que aquelas operações eram endereçadas pela forma finalmente descoberta e realizada”. Isto é um fato de finalidade ontológica, seja porque o estilo é sempre pessoal, isso quer dizer que a pessoa é acima de tudo relação com o ser, seja através da transformação da matéria, dos conteúdos espirituais que acontece no plano estilístico em causa, precisamente pondo em jogo a verdade. Em meu parecer, essa é uma das contribuições significativas da ontologia estética de Pareyson.
Considera-se, portanto que a formatividade tem pressupostos ontológicos cuja base é a espontaneidade da conduta humana o que justifica a arte não se deixar explicar em termos causais. A singularidade da interpretação no pensamento pareysoniano problematiza o que constitui uma obra de arte. Onde está a sua origem? A interpretação desvenda o enigma da obra de arte? A busca pelo significado da essência da arte dá conta do que é a arte? Os princípios que envolvem a natureza e a tarefa da estética são de caráter filosófico e se diferenciam dos conceitos de poética e/ou de crítica de arte. Pareyson considera a diversidade das experiências que a filosofia pode lançar mão. Desse modo, os problemas recolhidos nessas diversas fontes devem ser observados pela estética, mas com o olhar atento para os conceitos gerais elaborados por ela, os quais devem ser testados nos diversos campos da arte.
Em Pareyson, Operar humano não significa somente dominar as técnicas com as quais foi formada a obra de arte. Ao contrário, operar humano significa o processo interpretativo mesmo, através do qual o artista formou a obra de arte: aquele seguir uma idéia que em primeira mão é sem forma e depois durante o processo artístico assume forma. O operar humano é por excelência: o pôr em forma uma idéia que antes era informe, e conseqüentemente era indefinida, a fim de que a obra convença. O artista diz: sim, escolhi esta idéia que quero representar8 (TOMATIS, 2003, p, 47). Para escolher a obra de arte é necessário interpretá-la. A obra de arte em particular, ao contrário de outros âmbitos da existência humana é algo totalmente inútil: não é ética, não é utilizável em modos diversos, a arte é arte e não outra coisa. O exemplo mais evidente é, segundo Pareyson, aquele da execução de uma apresentação musical. Certamente, há quem lendo uma partitura musical “toca” no pensamento a música; todavia as notas musicais são tais somente no momento em que o intérprete a executa: isto significa que não há um intérprete mais original e autêntico do que outro. Todas as interpretações são interpretações daquele musical compartilhado, e a partitura musical vive das interpretações que dela se executa; ambas vivem na interpretação. A relação entre interpretação e arte dá-se nesse âmbito. De acordo com Pareyson: não existe arte fora da interpretação que se dá dessa arte, uma obra torna-se arte somente na interpretação que dela se dá. Mas isto não significa que as interpretações resolvam o problema da arte, não significa que a arte seja anulada nas suas interpretações – se fosse assim haveria um relativismo absoluto, que em relação a própria condição do absoluto não seria mais relativo, sendo, portanto também ele absolutismo por excelência. Não há arte senão na interpretação, mas ao mesmo tempo é necessário também afirmar que não há interpretação sem arte, sem o recriar, sem o re-fletir. Pareyson ressalta sempre a condição factual do homem inserido em seu contexto histórico. A sua reflexão estética pressupõe a relação pessoa-forma, no entanto deve-se sempre lembrar que forma, em Pareyson é uma espécie de organismo composto de elementos harmônicos e sempre singulares.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(Ao longo do texto fiz uso da abreviatura ETF para fazer referência a Estetica. Teoria della Fomatività.
As traduções de conceitos e/ou passagens de obras de Pareyson são de minha autoria).
PAREYSON, Luigi. Estetica. Teoria della Fomatività, (1954), IV ed. Milano, Tascabili Bompiani, 2005.
________. Teoria dell’Arte. Saggi di estetica, Milano, Mursia, 1965.
________. I problemi dell'estetica, (1966), 2° ed., Milano, Marzorati, 1966.
________. I problemi dell'estetica, oggi, (1964), in: P. Nardi (a cura di), Arte e cultura contemporanea, Firenze, Sansoni, 1964.
________.Conversazioni di estetica, (1966), Milano, Mursia, 1966.
________.Os Problemas da Estética, trad. Maria Helena Garcez Nery, São Paulo, Martins Fontes, 2010.
FINAMORE, R. Arte e formatività. L'estetica di Luigi Pareyson, (1999), prefazio di
TILLIETTE, Xavier. Roma, Città Nuova, 1999.
TOMATIS, Francesco. Vita, filosofia, bibliografia pareysoniana Brescia, Morcelliana, 2003, p,47.
GIVONE, Sergio. Storia dell’estetica, Roma – Bari, 1995.
1. Doutoranda em Filosofia – Universidade Federal do Rio Grande do Norte – CCHLA – PROGRAMA DE DOUTORADO INTEGRAD/PIDFIL – Orientador: Prof. Oscar Federico Bauchwitz. Grupo de Pesquisa: A Interpretação na Arte e nas Ciências Humanas segundo o pensamento de Luigi Pareyson. Coordenadora: Profa. Maria Helena Garcez Nery. irisfsol@bol.com.br
2. Luigi Pareyson viveu 73 anos (1918-1991), tornou-se uma das maiores revelações filosóficas italianas do século XX, foi um dos primeiros a tornar conhecido na Itália, o “circuito” dominado pelo neo-idealismo, isto é, o existencialismo alemão. Desde muito jovem ainda estudante de filosofia na Universidade de Turim destaca-se em suas leituras que o conduzem a constatar, investigar, desmistificar e relembrar que o homem pergunta. E pergunta, sobretudo, por si e por tudo aquilo que o circunda: o mundo, a existência, as coisas, o real. É nesse universo que nasce a sua primeira obra (La filosofia dell’esistenza e Carlo Jasper, 1940), originada como tese de Graduação, “Laurea” em 1939 e publicada no ano seguinte, revelando a mente filosófica e a profundidade do jovem de apenas 21 anos que vislumbrava a compreensão do problema da liberdade e da existência humana.
3. TOMATIS, Francesco.Vita, filosofia, bibliografia pareysoniana Brescia, Morcelliana, 2003, p,47.
O conceito de Operar humano em Pareyson, não significa somente dominar as técnicas de formação da obra de arte. Ao contrário, operar humano significa o processo interpretativo mesmo, através do qual o artista formou a obra de arte, a saber, segue-se uma idéia que em primeira mão é sem forma e depois durante o processo artístico assume forma. O operar humano é por excelência: o pôr em forma uma idéia que antes era informe, e conseqüentemente era indefinida, a fim de que a obra convença. O artista diz: sim, escolhi esta idéia que quero representar.
4. FINAMORE, R. Arte e formatività, Roma, Città Nuova Editrice, 1999, p. 73.
5. O termo forma, está associado à clássica contraposição entre ”matéria” e “conteúdo” em outros autores, que, por sua vez, evocam a antítese “formalismo” e “conteudismo”. Pareyson chama atenção ao que se segue, as referências que utilizam o termo forma desta maneira privilegiam um ou outro dos dois termos. A estética da formatividade quer exatamente superar estes dualismos. Pareyson entende por estéticas “formalistas” aquelas que concebem a arte a partir do caráter físico da obra, isolando seu significado no plano formal e por estéticas “conteudistas” aquelas que vêem a arte como um mediador de seu verdadeiro significado, a saber, a essência da arte seria algo exterior à própria obra.
6. O eidos, (em latim, species, gênero), i. é, a forma inteligível, era pensada como algo distinto da morphé (em latim, forma), a forma sensível. Evidencia-se aqui o antagonismo do conceito de forma.
7. O termo spunto pode ser traduzido dentre outros modos como o ponto de partida do processo de formação, a saber, o conjunto de elementos inseridos em uma determinada circunstância que se coadunam com o olhar formativo da pessoa que percebe em uma determinada situação. O tradutor brasileiro do livro, Estética - Teoria da Formatividade, Prof. João Ricardo Moderno, utilizou o termo em inglês insigth para traduzir spunto. No italiano coloquial, spunto significa a ocasião ou o motivo que gera o início de um projeto ou uma criação artística. Também significa a primeira palavra de uma seqüência sugerida ao ator para que este recorde o seu texto. Em português, atribui-se para esse recurso a palavra “deixa”.
8. TOMATIS, Francesco. Vita, filosofia, bibliografia pareysoniana Brescia, Morcelliana, 2003, p,47.