Camilo Pessanha, Cruz e Sousa e as poéticas da modernidade1

Camilo Pessanha, Cruz e Sousa e as poéticas da modernidade1


Annie Gisele Fernandes2


Resumo: Esse ensaio objetiva analisar o modo como, na poesia de Camilo Pessanha e na de Cruz e Sousa, o poder das palavras está, em grande parte, na força das imagens que elas suscitam e na sonoridade que ou prolonga a carga semântica de cada vocábulo, ou estabelece tensão entre o significante e o significado.

Palavras-chave: Lírica Moderna; constituição do sujeito; Camilo Pessanha; Cruz e Souza; hipotipose.

Abstract: This paper propose a study about Camilo Pessanha’s poetry and Cruz e Sousa’s poetry considering the plastic force of the words in their poems. This very use of the words thrives in extracting them the force to evoke images and to make sounds powerful, extensive and long-lasting. They are also resourceful to put meaning, significant and sound in tension.

Key-words: modern poem; self constitution; Camilo Pessanha; Cruz e Sousa; hypotyposis.

Como apontou Fernando Guimarães, o Simbolismo define-se pela estética da figuração que, ao pôr em questão a estética da representação, cria nova concepção artística, estética, fundamentada no princípio das relações analógicas, metafóricas. No Simbolismo e, a partir dele, nas vanguardas, sobressaem as metáforas inusitadas, as analogias inesperadas, novas, e até experimentais, entre sons, imagens, conceitos. O poder da palavra (dos verbos e especialmente dos nomes) é ampliado de modo que todos os aspectos constitutivos de um vocábulo mantenham relação analógica com outros vocábulos – não somente pela via do significado, mas também pela via dos sons e das imagens que suscitam. Assim, concorrem, numa mesma composição, logopéia, fanopéia e melopéia – para empregar os termos com que Ezra Pound pensou e caracterizou a poesia, antes da modernidade e para definir a própria modernidade – com o propósito de ampliar ao máximo a capacidade sugestiva de cada vocábulo, de cada verso, do poema em sua totalidade.
Por isso, ao tentar fixar a dimensão estética do Simbolismo, sobressai a constatação de que se tratou da criação de uma poética cujo intento é ampliar ao máximo a capacidade de cada vocábulo, isoladamente e em relação estreita com os demais, de produzir figuras, de produzir sons que suscitam figuras, imagens, sensações, rememorações – e não se pode esquecer que todos esses elementos e tudo aquilo que cada um representa deve ser evocado e esperado nesse encadeamento assindético que não sobrepõe um ao outro, ao contrário, torna possível que figuras, imagens, sensações, rememorações sejam suscitadas a um só tempo. Desse modo, cria-se intensa relação entre todos os elementos constitutivos do verso, do poema, da poesia, que passa a ser vista como um todo orgânico em que tudo significa e/ou sugere algo.
Charles Baudelaire, em “A teoria das correspondências”, escreveu: “Entre os excelentes poetas não há metáfora, comparação ou epíteto que não seja adaptação matematicamente exata na circunstância atual, porque essas comparações, metáforas e epítetos são tomados das inesgotáveis reservas da universal analogia, e porque não podem ser colhidos noutro lugar” (BAUDELAIRE, 1951, p. 1077-1078). Significa, portanto, que um não pode existir sem o outro: o mundo material, natural, não pode ser tido isoladamente, como conjuntura perfeita como na representação mimética, nem o mundo espiritual pode ser considerado na sua perfeição plena, absoluta, de modo isolado, visto que essa perfeição está em ligação contígua, recíproca, conversível com o plano material, natural. A função do poeta é apreender “o eco misterioso das coisas e sua secreta harmonia” e transpô-los para a criação artística a qual, pelas analogias que a constituem, deve sugerir as correspondências universais. René Ghil, em “Instrumentação verbal”, afirmou:

A linguagem é, ao mesmo tempo, som e signo: como signo, é a representação figurada da Idéia. Como som, é passível de ser arranjada musicalmente, e, até certo ponto, é assimilável ao som inarticulado. Mas sua qualidade de signo ou símbolo indica que é sobretudo idealmente que se pode considerá-la como música e que ela não poderia dissolver-se, como som inarticulado, em uma combinação de notas harmônicas que exprimem a emoção apenas pelos acordes vibratórios. (In: MICHAUD, 1969, p. 787.).

Vê-se, aqui, o princípio simbolista, que antecipa em muitos anos o Círculo Lingüístico de Praga, de que a linguagem deve ser considerada em sua dupla composição de significado e significante: o primeiro, como reitera René Ghil, “é a representação figurada da Idéia”; o segundo, a materialidade, o aspecto físico, dos signos. Quer da perspectiva do significado, quer da perspectiva do significante, os vocábulos existem em intrincada relação analógica uns com os outros – relação que tanto pode manter indissociáveis significado e significante (simbolismo universal e simbolismo textual, para retomar Baudelaire e Fernando Guimarães) como pode gerar uma das tensões possíveis na composição poética simbolista ao permitir leituras diferentes e às vezes conflitantes entre significado e significante, entre textualidade e materialidade dos signos.
Esse processo é evidente, por exemplo, em um poema como “Foi um dia de inúteis agonias”, de Camilo Pessanha, cujos primeiros versos seriam já significativos para o demonstrar:

Foi um dia de inuteis agonias
Dia de sol, inundado de sol
Fulgiam nuas as espadas frias
Dia de sol, inundado de sol.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
(PESSANHA, 1994, p. 109).


A sintaxe fragmentada sugere, metaforicamente, a maneira fragmentada com que o sujeito poético apreende o mundo, o real circundante; as aliterações (/f/, /s/, /d/, /m/, /n/) e assonâncias (/i/ e /u/) aproximam analogicamente, pela sonoridade, vocábulos de significado muito diferentes, como “dia”, “inundado”, “fulgiam”, “frias”, e colaboram para a manutenção do estado de dor, de agonia – pelo fechamento e agudização das vogais e pela sensação de prolongamento que as nasais e líqüidas possibilitam. As rimas internas (dia e agonias, no v. 1; fulgiam e frias, no v. 3; inúteis, inundado, nuas e inundado, v. 1 a 4) e as rimas externas (ABAB), bem como as repetições (os versos 2 e 4 são idênticos; o vocábulo “dia” é empregado nos versos 1, 2 e 4) efetivam a ligação material entre versos, sons e imagens – ligação que coesiva e coerentemente muito pouco aparece na composição. As imagens suscitadas por cada verso são tão estilhaçadas quanto cada verso – que, sintaticamente e do ponto de vista da coerência argumentativa, se encerra em si mesmo – e apenas pela figuração (que evoca e reúne os procedimentos estético-formais acima arrolados) é que se estabelece nexo entre as imagens e alcança-se significado possível.
Veja-se outro exemplo: em “Violoncélo”, a disforia pela fragmentação do eu e da percepção de mundo é acompanhada pela fragmentação sintática:

Chorae, arcadas
Do violoncélo,
Convulsionadas.
Pontes aladas
De pesadelo...

De que esvoaçam,
Brancos, os arcos.
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio os barcos.
.........................
(PESSANHA, 1994, p. 130-131).

Note-se a economia dos versos e a economia dos elementos conectivos nessa primeira estrofe: são dez versos de apenas 4 sílabas poéticas terminados, muito freqüentemente (são oito vezes nos dez versos do excerto transcrito), por um sinal de pontuação que, sonora e visualmente, parece limitar, fechar, cada verso em si mesmo. Do ponto de vista temático, há quatro pequenos conjuntos: os versos 1 a 3; os versos 4 e 5; os versos 6 e 7 e os versos 8 a 10, que estão relacionados entre si, seja porque os versos 1 a 3 e 6 e 7 podem, analogicamente, aludir ao movimento do arco no instrumento de cordas e à idéia de pequenos vôos, seja porque os versos 4 e 5 e 8 a 10 podem evocar uma mesma paisagem: as “pontes aladas”, visto que suspensas, “por baixo” da qual “passam [...] os barcos”. Numa perspectiva de que a analogia, segundo o senso comum, são idéias afins e, segundo a filosofia grega, é a identidade de relação entre pares de conceitos dessemelhantes, pode-se perceber ambas nos versos em tela. Da dessemelhança entre “arcadas” e “pontes” consideradas pontualmente chega-se, pela proximidade sonora, pelo desespero do sujeito poético, a tão possível relação entre as duas imagens que permite ao leitor fazer uma derivar da outra – das cordas tensionadas do violoncelo tocadas pelo arco vê-se a ponte arcada que liga uma corda à outra assim como das pontes em arcos, em seqüência, pode-se imaginar o movimento das “arcadas / Do violoncélo”. Desse modo, não parecerá absurdo afirmar que as imagens parecem “soltas” e solicitam ao leitor o estabelecimento das possíveis relações entre “arcadas”, “pontes”, “arcos” e “barcos”. Naturalmente, favorecem essa relação e essa leitura metafórica a insistência num campo sonoro em que sobressaem as aliterações em nasais (/m/, /n/) e liquidas (/l/), em dentais (/t/, /d/), plosivas (/p/, /b/) e velares (/k/) e nas fricativas (/s/, /x/, /z/, /v/), que se repetem ao longo dos dez versos transcritos e ao longo de todo o poema; favorecem-na, também, algumas rimas, como “aladas” e “arcadas” (v. 1 e 4), “arcos” e “barcos” (v. 7 e 10), que aproximam as “arcadas” e as “pontes”.
Nesses versos, do mesmo modo que a percepção do sujeito poético apresenta-se estilhaçada, também o poema parece estilhaçado, uma vez que as imagens não são lógica e seqüencialmente encadeadas; uma vez que tais imagens são breves momentos captados não sem a intervenção do imaginário ou do inconsciente do sujeito poético – imaginário ou inconsciente que “se cola” às percepções do real circundante de modo que uma imagem se funde à e se confunde com a outra; imaginário que determina as relações e correlações entre o real circundante apreendido e o que vai no interior do eu (revelando-o, portanto) ao constituir a seqüência inusitada de imagens.
Fernando Guimarães, em Poética do Simbolismo em Portugal, reitera que

a poética simbolista nunca deixou de oscilar entre dois extremos: a referencialidade da linguagem, extremo esse que se punha em questão, e o isolacionismo fonético, o qual não deixava de exercer especial fascínio sempre que havia empenho em se valorizar a música do poema (1990, p. 21).

Esse exercício estético parece evidente nos excertos da poesia de Pessanha estudados, nos quais estão patentes as relações analógicas textuais e materiais. Entretanto, interessa citar um exemplo em que avulta a ênfase no segundo “extremo” – o “isolacionismo fonético” com objetivo de ampliar ao máximo a musicalidade dos versos. Nestes versos de Eugénio de Castro, destacam-se as analogias que se pode estabelecer entre os sons afins, mais do que as analogias entre imagens e sons e as analogias entre significado e significante:

Na messe, que enlourece, estremece a quermesse...
O sol, o celestial girassol, esmorece...
E as cantilenas de serenos sons amenos
Fogem fluidas, fluindo à fina flor dos fenos...

As estrelas em seus halos
Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves...

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
(CASTRO, 1967, p. 58).

Processo parecido parece patente também em “Antífona”, de Cruz e Sousa:

Ó formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblina!...
Ó formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...

Formas do Amor, constelarmente puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolência de lírios e de rosas...

Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Tudo! Vivo e nervoso e quente e forte,
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte...
(CRUZ E SOUSA, 2000, p. 63).

Nos versos transcritos, sobressai o aspecto significante dos vocábulos, que são postos em relação de contigüidade sonora, seja pela via das assonâncias (por exemplo, /a/ e /e/, nos versos 1 e 2; /a/ e /i/ no verso 3), seja pela via das aliterações (especialmente, as nasais e as líquidas). O poeta estabelece um jogo fonológico através do qual faz imperar a conjuntura fluida, vaga, levemente ondulante que põe em destaque o que o plano do significado evoca: as “Indefiníveis músicas supremas”. O envolvimento pela música, num exemplo muito bem acabado do que significa sugerir / despertar sensações através da música conforme institui a poética simbolista francesa, leva o sujeito poético ao êxtase expresso na estrofe final, que se inicia pelo verso integrador, contundente, sinestésico, polissindético: “Tudo! Vivo e nervoso e quente e forte”. Desse êxtase eufórico, o poeta leva o leitor para o aparentemente disfórico: “Nos turbilhões quiméricos do Sonho, / Passe, cantando, ante o perfil medonho / E o tropel cabalístico da Morte...”. O “aparentemente disfórico” parece pressuposto, talvez, no “perfil medonho” e no “tropel cabalístico da Morte”; entretanto, se o “perfil medonho” pode ser o do sujeito poético que contempla o desfilar sinestésico de visões e sons e o “tropel cabalístico da Morte”, é a música, presente como elemento de sugestão e de evocação de sensações desde o primeiro até o último verso do poema, que pode pôr em relação de contigüidade sujeito poético, sensações, realidade onírica e a Morte.
Se, como expôs Baudelaire, um dos propósitos da modernidade é produzir choque no leitor através da quebra brusca de tom (BAUDELAIRE, 2002), pelo que se discutiu até aqui é patente que as analogias têm importante papel no costurar o que parece desalinhavado demais; no associar, ligar, segundo nova lógica – a da figuração – o que parece estanque. Recorra-se, novamente, à poesia de Camilo Pessanha para tratar, agora, da analogia e de outro elemento estético-formal importante no contexto da poesia finissecular, o metaforismo inusitado, sob a perspectiva da adjetivação e da substantivação, associadas ao emprego de léxico pouco comum, inaudito e rebuscado. Leia-se o poema:

Cristalisações salinas,
Myrrhae na areia o plasma vivaz,
Não se desenvolvam as ptomainas.
Que adocicado! Que obcessão de cheiro!
Putrescina! – Flor de lilaz!
Cadaverina! – Branca flor do espinheiro!
(PESSANHA, 1994, p. 125).

Nos três primeiros versos cria-se, aparentemente, o cenário: as “cristalizações salinas” podem ser os pequenos blocos de sal que se formam nas partes sólidas banhadas pela água do mar, que se evapora pela ação do sol; tais cristalizações, brancas ou transparentes, se contrapõem, como a “areia”, ao vermelho intenso do “plasma vivaz”, sinal, como a adjetivação indica, de vida. Se biblicamente o sal é “o sal da vida”, é o “tempero”, o elemento necessário a ela, e se o plasma é substância orgânica fundamental, vital, a partícula negativa que inicia o verso 3 pode reiterar isso, uma vez que afirmar imperativamente: “Não se desenvolvam as ptomainas” significa, a princípio, recusar a putrefação das matérias animais após a morte. Entretanto, os dois versos que finalizam esse sexteto exclamam pela “putrescina” e pela “cadaverina”, aminas tóxicas que sucedem as ptomainas e finalizam o processo de decomposição e putrefação, liberando gás carbônico e gerando odor fétido que intoxica. Ao sujeito poético, porém, tais substâncias causam outro efeito, como mostram as enfáticas exclamações: “Que adocicado! Que obcessão de cheiro!” e as exclamações adjetivas que qualificam a “putrescina” e a “cadaverina” – “Flor de lilaz!” e “Branca flor do espinheiro!”, respectivamente. Nessa perspectiva, as “cristalisações salinas” que iniciam o poema adquirem outro sentido: não são os cristais de sal como hipoteticamente se propôs, mas são a própria putrescina, que, isolada, apresenta-se como cristal sólido e solúvel em água. Em evidente tensão vida-e-morte, o tom efusivo de um sujeito poético que se mostra nitidamente apenas na locução das imperativas – versos 2 e 3 (os únicos que contém verbos; os demais são [integralmente] nominais) – justifica-se porque a dor e o prazer estão muito bem amalgamados (assim como as rimas, que seguem o esquema ABACBC) de modo que as imagens que gerariam disforia, angústia, aversão, geram a euforia, a efusão, a enfática expressão de alegria diante da possibilidade de decompor-se e dissolver-se (na água), de deixar de ser indivíduo e voltar a ser todo, uno. É nessa leitura que a tensão parece se desfazer e avulta o reino da analogia, o “eco misterioso das coisas e sua secreta harmonia”. Desse modo, talvez, se possa conjeturar que a assonância em /a/ e a gradação de cores – do vermelho para o lilás e desse para o branco – contribuam para reiterar, respectivamente, a abertura para a totalidade (a vogal /a/, tida como aberta, também está presente nas rimas de quatro dos seis versos) e o franqueamento para a eufórica luminosidade que abre e fecha o poema (“Cristalizações” e “Branca”) – é de notar que aquilo que é da ordem do vermelho e do lilás permanecem contidos por essas duas imagens, como o sujeito poético está nas imagens que apresenta do real circundante. A aparente impessoalidade do poema de Pessanha decorre de um processo de deslocamento que se tornou cada vez mais comum na lírica moderna: o real circundante é evocado de um ponto de vista deslocado, de um ponto de vista que é o do próprio eu, que vê no “fora”, analogamente, aquilo que lhe vai dentro. Assim, se se considera que nesses versos o sujeito poético “escondeu-se” e deu-se a conhecer apenas nas imperativas e nas exclamativas, é patente que essas construções constituem recurso estético que dá o tom à composição e que o que resta é a perspectiva impressionista do eu, que lança para o exterior as sensações, impressões, que dominam o seu interior.
A modernidade se forma, portanto, numa conjuntura em que: as alterações estético-formais são decisivas para a consolidação e desenvolvimento dos temas; os limites e as oposições simples são minimizados diante da constante sensação de deslocamento, da constante tensão, do recorrente sentir-se em suspenso; a consciência da linguagem começa a se estabelecer decisivamente no sentido de ser o contexto em que o sujeito se procura, se mostra, se constitui, no sentido de se ter a consciência plena de que a linguagem é a essência da poesia – não somente porque a forma, mas sobretudo porque a realidade da linguagem torna-se equivalente à realidade do mundo. Ora, a tensão e o descentramento são dos temas mais importantes da modernidade, assim como o é a capacidade de evocar, presentificar as pessoas, nomear e adjetivar os objetos, as coisas – muito menos na perspectiva de representação do real que na intenção de acumular pessoas, objetos e coisas de infinito, de permanência pela palavra. Entrementes, o que se pretendeu destacar é como a intenção de chocar o leitor pelo corte brusco de tom derivou de escolhas estético-formais que têm as relações analógicas como base. Se se trata de decodificar o cifrado, decifrar o que é de natureza hieroglífica, apreender o simbolismo universal, o passo fundamental é reconhecer os mistérios da analogia, de que trata Baudelaire – analogia que o poeta, sendo um tradutor, um decifrador, incorpora em seu texto como modo de sugerir e, ao mesmo tempo, atingir a correspondência universal, quer pela imaginação apoiada na razão (evidente, por exemplo, na racionalidade lúdica de opções estético-formais), quer pela imaginação que decorre da sensação (indissociáveis na poética simbolista).
Sobre a elaboração estética do simbolismo, pode-se afirmar que:

O poema simbolista é o poema animado não tanto pela voz que inspira vida a ele, mas pelo olho móvel que vagueia incessante, para frente e para trás, por sobre a página, preso num instante sempre recorrente e de importância vairável. A ausência de la direction personnelle enthousiaste de la phrase (direção pessoal entusiástica da frase), como diz Mallarmé em Crise de vers (1886-92-96), possibilita uma arte que deve mais às formas do que ao poeta. A forma multiplica os significados, mesmo quando os articula; o poema se torna uma multiplicidade de expressões totais e unificadas. A sintaxe excêntrica, mas extremamente meticulosa, de Mallarmé descentraliza a frase, mais desafiando do que pronunciando uma solução. E muitas vezes esse grimoire altamente meticuloso rompe-se de súbito com inopinadas intercalações de substantivos, gramaticalmente soltos, irrequietos, maravilhosamente errantes [...] (Clive Scott, “Simbolismo, decadência e impressionismo”, Apud BRADBURY & McFARLANE, 1999, 167).


É o que se quis demonstrar aqui, embora, nos textos analisados, isso pareça mais evidente em Pessanha do que em Cruz e Sousa. Quis-se, também, reiterar o imperativo de estudar a poética simbolista no Brasil e em Portugal como “lírica moderna”, proponente e antecipadora da intensa ruptura estético-temático-formal geralmente atribuída à Geração de Orpheu e aos ícones da Semana de 22.  Compondo o poema como um jogo intrincado onde tudo se relaciona com tudo, ao mesmo tempo em que, à primeira vista, tudo parece solto, e/ou desarticulado, e/ou fragmentado, Pessanha e Cruz e Sousa fazem ver que em sua poesia o tratar de si e a constituição e o esvaimento do Eu adquirem dimensões um tanto particulares pelo fato de que recursos clássicos como a ekphrasis, a hipotipose ou a dispositio estão fundados num recurso simbolista por excelência: a ação dos sentidos e a importância deles na percepção íntima do exterior e na relação que se estabelece entre sujeito poético e mundo e desenvolvem-se, à moda parisiense, na esteira das transformações que concretizam a renovação lírica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
_____. Ouvres complètes. Paris: Gallimard, 1951.
BRADBURY, Malcolm & MCFARLANE, James. Modernismo. Guia Geral. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
CASTRO, Eugénio. Obras poéticas de Eugénio de Castro. Vol. I. Lisboa: Parceira A. M. Pereira Lda., 1967.
CRUZ E SOUSA. Obra Completa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 2000.
GUIMARÃES, Fernando. Poética do Simbolismo em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1990.
MICHAUD, Guy. Message poétique du symbolisme. Paris: Nizet, 1969.
PESSANHA, Camilo. Clepsidra. Ed. crítica de Paulo Franchetti. Campinas: Editora da Unicamp, 1994.
POUND, Ezra. ABC da literatura. São Paulo: Editora Cultrix, [s.d.].

 

1.  Esse texto dialoga com o ensaio “As metáforas e as analogias inusitadas – breve estudo da poesia portuguesa de fim-de-século XIX”, apresentado no colóquio “Expressões da Analogia”, realizado em maio de 2008 na Universidade Nova de Lisboa, e publicado em Expressões da analogia – Actas do Colóquio, Lisboa, Edições Colibri, 2008, pp. 241-248.

2.  Professora doutora da Área de Literatura Portuguesa da FFLCH / USP.