A IDENTIDADE N’A CAVERNA: CRISE E RECONSTRUÇÃO
Raquel de Sousa Ribeiro1
Resumo: Este trabalho propõe-se examinar a crise de identidade de artesão, do protagonista Cipriano Algor, e sua tentativa de reconstrução ao tentar adaptar-se ao modelo oferecido pelo Centro Comercial. Detectamos, simultaneamente, que o tratamento dado pelo autor ao assunto reflete a situação do mundo e do homem contemporâneos.
Palavras chave: identidade, modelo bíblico, modelo contemporâneo
Résumé : Cet article veut examiner la crise d’identité de l’artisan, du protagoniste Cipriano Algor, et sa tentative de reconstruction, lorsqu’il essaie de s’adapter au modèle offert par le Centre Commercial. En même temps, nous découvrons que le traitement imprimé par l’auteur à la matière reflète la situation du mon de et de l’homme contemporains.
Mots-clés : identité, modèle biblique, modèle contemporain
Cipriano Algor e sua família, personagens d’A Caverna, de José Saramago, sobreviveram, durante a maior parte de suas vidas, da fabricação e comércio de utensílios domésticos de barro. Neste período, o protagonista construiu uma identidade de artesão, ou seja, uma identidade marcada pelo desenvolvimento harmonioso dos diferentes elementos que compõem a sua personalidade. Segundo Ernest Fischer, em A necessidade da arte, o artesão desenvolve suas diferentes potencialidades de maneira simultânea e harmoniosa, uma vez que idealiza o objeto a ser construído, fabrica-o e comercializa-o, empenhando-se, totalmente, em cada uma destas etapas do processo. A era industrial, por outro lado, segundo o mesmo estudioso, tendo por objetivo a produção em grande quantidade, a fim de atender à demanda de uma população crescente, passa à produção em série e a exigir a especialização do trabalhador. Uma das conseqüências dessa prática é a não utilização de muitas das capacidades do indivíduo, sua atrofia e o surgimento de um desequilíbrio. No mundo pós-industrial, a mudança, deslocamento ou descentramento do sujeito, bem como os problemas decorrentes aguça-se. Segundo Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade :
O sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais ‘lá fora’ e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as ‘necessidades’ objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.
Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. O sujeito assume identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. (...) à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.( 2006, p.12,13).
A preferência dos consumidores do Grande Centro Comercial pelos mesmos produtos fabricados a partir do plástico faz com que o chefe do departamento de compras recuse os de Cipriano, provocando-lhe uma crise de identidade, na medida em que não só todo o desenvolvimento referido fica suspenso, como sua sobrevivência e independência estão ameaçadas. É por necessidade, portanto, que se dedica a sua nova atividade.
Tentando superar a crise em que o oleiro mergulha, sua filha procura encontrar outra forma que consiga a sua reinserção no mercado do Centro: o resultado é tornar-se fabricante de estatuetas de barro. Em sua nova atividade, que é também uma reconstrução de sua identidade em crise, Algor aproxima-se de vários mitos da criação, entre eles do Deus judaico-cristão. Nesta linha, o discurso do narrador refere-se à sua condição de criador de adões e evas: só alguns vieram a este mundo para fazerem do barro adões e evas (SARAMAGO: 2000, 173).
A relação do criador bíblico com suas criaturas é marcada pela semelhança, pela continuidade do seu ser nelas, por aquilo que, para ele, é familiar, e pela diferença, por aquilo que contraria seu ser, seu projeto, desgostando-o, provocando-lhe estranhamento e reação. O mesmo ocorre entre o criador criatura d’A caverna e suas criações. No que se refere à sua relação com o criador judaico-cristão e com outros criadores de outros mitos, o oleiro surge como duplo, na medida em que se caracteriza por uma dupla relação: é o mesmo e outro, é semelhante e diferente, é, enfim, um paradoxo, como diz Clément Rosset em O real e seu duplo:
O ensaio que se segue pretende esclarecer o vínculo entre a ilusão e o duplo, mostrar que a estrutura fundamental da ilusão não é outra senão a estrutura paradoxal do duplo. Paradoxal porque a noção do duplo, como veremos, implica nela mesma um paradoxo: ser ao mesmo tempo ela própria e outra.
Entretanto, toda duplicação supõe um original e uma cópia (...) (2008, 24, 48).
Este criador criatura e suas obras relacionam-se de maneira semelhante: acontece entre eles o mesmo que se observa entre ele e o criador maior.
No intuito de recuperar a habilidade adormecida durante o tempo de inatividade, Algor modela, no barro, uma figura à sua imagem e, outra, à imagem de Isaura, sua amada, pretendendo que nelas se manifestem traços não só dos modelos imediatos como de todos os seres, independentemente de idade, raças ou quaisquer outras diferenças, portanto, também à sua imagem: figuras de que qualquer pessoa, homem ou mulher, jovem ou velha, olhando-as, pudesse dizer, Parecem-se comigo. (SARAMAGO: 2000, 152,153).
A idéia de que a figura masculina é feita à sua semelhança também aparece quando imagina que alguém a queira comprar e que responderá: essa não está à venda, (...) Porque sou eu.( SARAMAGO: 2000, 152).
De acordo com o discurso do narrador bíblico, Deus, depois de criar o mundo, em especial a terra e a água, cria o primeiro homem, Adão, a partir da mistura desses dois elementos, ou seja, do barro. Acrescenta-lhe, ainda, o sopro que lhe confere vida, como se pode ler na Bíblia de Jerusalém, livro do Gênesis, capítulo I, versículo 2:
No tempo em que Iahweh Deus fez a terra e o céu, não havia ainda nenhum arbusto dos campos sobre a terra e nenhuma erva dos campos tinha ainda crescido, porque Iahweh Deus não tinha feito chover sobre a terra e não havia homem para cultivar o solo. Entretanto, um manancial subia da terra e regava toda a superfície do solo. Então Iahweh Deus modelou o homem com argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente. (1995,33).
Este homem é criado mais à semelhança de Deus do que à sua imagem: Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança,(...)(1995: I, 1, 32). Mais à semelhança do que à imagem porque esta refere-se ao físico e Deus não se apresenta desse modo. Segundo o comentarista, “ ‘Semelhança’ parece atenuar o sentido de ‘imagem’, (...). O termo concreto ‘imagem’ implica uma similitude física, como entre Adão e seu filho (5,3)(1995, 32), ou seja, entre Adão e Set: No dia em que Deus criou Adão, ele o fez à semelhança de Deus, (...) Adão (...) gerou um filho à sua semelhança, como sua imagem, e lhe deu o nome de Set (Gênesis 5, p.38). Além disso, supõe uma similitude geral de natureza: inteligência, vontade, poder;” (1995, nota n, 32). Confere, ainda, às criaturas que cria os “dons preternaturais”. É isso que nos dizem Padovani e Castagnola, em sua História da Filosofia:
Da Escritura e da Tradição, garantidas pela interpretação da Igreja e sistematizadas pela teologia, evidencia-se, fundamentalmente, como o homem primigênio não só teria possuído aquela harmonia natural, de que agora é privado [ pelo pecado original], mas teria sido outrossim elevado, como que por nova criação, à ordem sobrenatural, com um conveniente conjunto de dons preternaturais. Noutras palavras, o homem teria participado – com uma natureza extraordinariamente dotada – da vida de Deus, teria gozado de uma espécie de deificação, não por direito, mas por graça. E evidencia-se também que – devido a uma culpa de orgulho contra Deus, cometida pelo primeiro homem, do qual pela natureza humana, devia descender toda a humanidade – teria o homem perdido aquela harmonia e a dignidade sobrenatural, juntamente com os dons conexos. (1962,136).
Do exposto, é possível dizer que Deus e Adão são simultaneamente semelhantes e diferentes, que são o mesmo e outro. Semelhantes ou o mesmo pelos “dons preternaturais’, pela semelhança de natureza, ou, conforme as palavras do comentarista do texto bíblico, de inteligência, vontade, poder. Por outro lado, são seres diferentes, outros, com sua marca pessoal, irrepetível. É pelo fato de o primeiro homem se revelar outro, ceder aos argumentos de sua outra parte, Eva, que comete o “pecado original”, fugindo do que Deus prescreveu, de que não comesse o fruto da árvore do Bem e do Mal. Da mesma maneira, Eva, ao mesmo tempo que é a costela de Adão, parte do seu corpo, também se revela outra ao induzir Adão a fazer algo que não pretendia:
Iahweh Deus plantou um jardim em Éden, no oriente, e aí colocou o homem que modelara. Iahweh Deus fez crescer do solo toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer, e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal. (Gênesis2, 8, p.33 ) Iahweh Deus chamou o homem : “Onde estás?”, disse ele. “Ouvi teu passo no jardim,”‘respondeu o homem; “tive medo porque estou nu, e me escondi.” Ele retomou: “E quem te fez saber que estavas nu? Comeste, então, da árvore que te proibi de comer!” O homem respondeu: “A mulher que puseste junto de mim me deu da árvore, e eu comi!” Iahweh Deus disse à mulher: “Que fizeste?” E a mulher respondeu: “ A serpente me seduziu e eu comi!”( Gênesis 3, 9, Idem, 35.)
Outro fator que contraria e desagrada a Deus é a violência dos descendentes de Adão e, em razão disso, decide puni-los com o Dilúvio, poupando Noé, sua companheira e seus descendentes, além de um casal de cada espécie criada:
Iaweh viu que a maldade do homem era grande sobre a terra, e que era continuamente mau todo o desígnio de seu coração. Iahweh arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra, e afligiu-se o seu coração. E disse Iahweh: “Farei desaparecer da superfície do solo os homens que criei - e com os homens os animais, os répteis e as aves do céu -, porque me arrependo de os ter feito.” Mas Noé encontrou graça aos olhos de Iaweh. (Idem, Gênesis, 2, p. 39).
De acordo com Padovani e Castagnola, “segundo a solução teísta do problema teológico, o homem existe verdadeiramente, mas depende totalmente de Deus, no ser e no agir.”( 1962,184). Ainda segundo o mesmo autor:
Deus, portanto, pode ou não pode criar, pode criar este ou um outro mundo, entre infinitos mundos possíveis, de modo que Deus, querendo criar o mundo, pode única e absolutamente criá-lo para a sua glória – embora esta já seja interiormente infinita, sendo Deus a atualidade, a perfeição plena. Se se admitisse para a obra de Deus uma finalidade diversa, extrínseca, seria também preciso admitir em Deus uma indigência, como todas as conseqüências acima mencionadas. Deus, portanto, cria o mundo do nada, e não o tira de sua substância, mas o cria livremente e para a sua glória . E o homem faz parte dessa criação.(1962,139, 140)
Da mesma forma que Adão e Eva se tornaram outros em relação ao Criador supremo, o adão e eva que Algor está criando também apresentam desdobramentos que desagradam ao oleiro. Ao imaginar que alguém queira comprar seu adão, seduzido pelo que ele é, também porque, como desejava o aspirante a vendedor do Centro, se reconhece nele, Cipriano nega-se a vendê-lo, porque a sua criatura não é apenas um outro, ou à semelhança do pretenso comprador ou de qualquer outro, desvinculado dele, mas é ele também, e, nesta condição, sendo Cipriano, desfazer-se dele, seria perder a sua integridade: “Algor dirá que essa não está à venda, (...) Porque sou eu.”(SARAMAGO: 2000, 152).
Na medida em que a figura feminina remete a Isaura e ao mesmo tempo não é ela, é outra, é seu duplo. Por outro lado, referindo-se a Isaura e sendo ela a atual amada do oleiro desempregado, e como o sujeito só ama porque encontra no outro, na amada, o que lhe falta ou o que é semelhante a ele, ou talvez porque procurará sempre a parte que foi retirada ao seu ancestral pelo criador divino, a eva do sogro de Marçal, Isaura, também será duplo dele. Todavia, como aconteceu com a figura bíblica e seu Adão, essas figuras criadas também vão suscitar experiências indesejáveis para o antigo fornecedor do Centro.
Depois de terminar o desenho das figuras que fabricarão artesanalmente, Marta aproxima-se do pai e das duas esculturas que criou. Observando a feminina, diz que não se parecem a nada (...) que tenha visto, em todo o caso, a mulher lembra-me alguém,( SARAMAGO: 2000,153). O futuro criador de estatuetas percebe ou desconfia que Marta esteja pensando em Isaura e, como tem resistido a confessar seu interesse ou amor por ela, talvez pela sua idade já avançada e temer parecer ridículo, ou por não estar em condições de prover a sua subsistência, sonda: Em que ficamos, perguntou Cipriano Algor, dizes que não se parecem a nada que tenhas visto e acrescentas que a mulher te lembra alguém (SARAMAGO: 2000, 153). Marta explica que coexistem as duas idéias, que, não obstante pareçam não ter semelhança com ninguém conhecido, tem a “impressão” de que nela existe algo de alguém próximo: É uma impressão dupla, de estranheza e familiaridade (...)(SARAMAGO: 2000, 153). Enquanto o mesmo é familiar, é conhecido, enquanto outro é estranho. Por outro lado, a memória de Marta não parece identificar de imediato, algo que está no fundo de sua memória, resistindo a ficar claro mas passível de revelação a qualquer momento, num retorno do reprimido. Pode também estar fingindo não identificar para não inibir ou suscitar a confissão do pai.
Os desdobramentos, por conseguinte, escapam ao seu projeto, fazendo com que reaja de maneira semelhante, em alguns aspectos, e diferente em outros, ao paradigma bíblico. Sem terminar o seu trabalho, sem levá-los ao forno para que adquiram a aparência de vida (SARAMAGO: 2000, 182,183), que é o equivalente ao sopro sagrado, destrói-os. Principalmente no caso da sua Eva, fica evidente que é para evitar a especulação de Marta, para não dar explicações que não deseja:
Cipriano Algor está agora sozinho na olaria. Provou distraidamente a solidez de uma cofragem, mudou de sítio, sem necessidade, um saco de gesso, e, como se apenas o acaso, e não a vontade, lhe tivesse guiado os passos, achou-se diante das figuras que havia modelado, o homem e a mulher. Em poucos segundos, o homem ficou transformado num amontoado informe de barro. Talvez a mulher tivesse sobrevivido se aos ouvidos de Cipriano Algor não soasse já a pergunta que Marta lhe faria amanhã, Porquê, porquê o homem e não a mulher, porque um e não os dois. O barro da mulher amassou-se sobre o barro do homem, são outra vez um barro só. (SARAMAGO: 2000, 173).
A semelhança com o protótipo bíblico surge ainda no fato de que Eva faz parte de Adão: a ficcional é barro que se mistura ao barro do representante masculino; a bíblica é feita a partir da costela de Adão, da criação divina não mais barro, mas já tornada carne. Além disso, a criação algoriana, quer se trate do masculino quer do feminino, ainda não recebeu o sopro, ainda não saiu do estágio do barro. Nisto também diferem.
Clément Rosset procura estabelecer uma ligação entre o duplo e a ilusão, revelando o seu caráter paradoxal, como já foi citado. Olivier Reboul, em seu livro Introdução à retórica, diz que “paradoxo” é uma “opinião que contraria a opinião comum;” e que “isso não significa contrariar a razão” (1998, 219). Marta, com sua segunda opinião, a de que a figura lhe lembra alguém, conhecido, portanto, contraria a opinião que manifestou inicialmente, a que surge como comum, como primeira e mais espontânea, naquela situação, a de que “não se parecem a nada que (...) tenha visto”. O discurso do pai denuncia esse paradoxo ao induzi-la a escolher uma das duas opiniões. A figura revela-se paradoxal ao suscitar as duas opiniões ou impressões em Marta: se é o mesmo e se o ser é uno, se não existe ninguém igual, não pode ser outro, mas, se é outro, é porque é diferente do modelo, não se confunde com ele, pelo contrário, são distintos.
Depois desses ensaios, destruídos, o criador criatura, Algor, dedica-se a nova criação, mas agora não apenas de seu primeiro homem à sua semelhança ou da primeira mulher à semelhança de sua amada, Isaura. Os novos modelos são mais distanciados da criatura que os modela, embora sejam representativos de vários segmentos da sociedade humana atual ou do passado: enfermeira, palhaço, bobo, esquimó, mandarim e assírio de barbas. Trata-se de uma série que deverá ser repetida, exatamente igual, muitas outras vezes, para vender: uma produção em série, em escala , não industrial, mas artesanal.
Embora se trate da segunda criação de Algor, porque deverá ser completada, o que não aconteceu com a anterior, o primeiro da série torna-se primeiro e, nesta condição, ganha um cuidado, uma dedicação, uma reverência, uma ansiedade próximas do culto ao sagrado, na medida em que toda a criação, todo o nascimento é um mistério, motivo de encantamento e perplexidade, principalmente para seus iguais. Por outro lado, há um grande empenho porque também estão ligados à vida, à necessidade de sobrevivência de quem os confecciona: é preciso ter produtos em condições de agradar para oferecer ao mercado, ao consumidor. Ao dever sua vida, sua sobrevivência e independência à criatura que deverá agradar ao consumidor, Cipriano passa de criador a criatura em relação à sua criação. Esta é outra explicação que contraria a anterior, a comum: o paradoxo está sempre presente. Estes são alguns campos semânticos do vocabulário empregado.
Cipriano, não obstante, continua como criador de adões e evas, de duplos, ao dar vida ou aparência de vida, à primeira criatura da série. Como um obstetra ou parteira, como se tivesse a ajudar a um nascimento (SARAMAGO: 2000, 202) retira das cinzas, tépidas como pele humana, e macias e suaves como ela.(SARAMAGO: 2000, 202), produzidas pelo fogo feito num buraco aberto na terra, como se fosse um ventre, a sua primeira criatura, de uma série de seis, que deverá garantir a sua vida, dar-lhe condições de sobrevivência, além de sentido.
Como num parto, Algor, depois de enterrar suas mãos nas cinzas, segurou entre os dedos indicador e médio, primeiro a cabeça ainda oculta de um boneco, depois, todo o corpo e puxou para cima .(SARAMAGO: 2000, 202 ) com todo o cuidado, como se de um bebê se tratasse. Além disso, para sacudir-lhe as cinzas do corpo, soprou-lhe no rosto, e é como se estivesse a limpá-lo da placenta e dos líquidos amnióticos. Este sopro remete, ainda, ao sopro do criador bíblico (Então Iahweh Deus modelou o homem com argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente. (Bíblia de Jerusalém, livro do Gênesis, capítulo I, versículo 2:1995, 33), na medida em que parecia que esta a dar-lhe uma espécie de vida, a passar para ela o hausto dos seus próprios pulmões, o pulsar do seu próprio coração.(SARAMAGO: 2000,202).
Este novo primeiro homem, este adão do oleiro aspirante a fornecedor do Centro, é uma enfermeira. Embora, enquanto Eva, seja feita da carne e do osso em que o barro do primeiro homem bíblico se tornou, é como o primeiro homem que ela é feita, modelada do barro. Como enfermeira, a estatueta representa aquela que, de maneira semelhante a Algor, ao criador, ajudará a dar vida a outras criaturas, e cuidará da vida de todos, na sociedade humana, inclusive do pai de Marta, caso lhe dê as condições de sobrevivência material, ao se tornar objeto de sedução dos consumidores do Centro. Por outro lado, como as filhas dos homens do discurso bíblico, ( e não como os descendentes masculinos, filhos de Deus, conforme Gênesis I, 6, p.39) é Eva, é mulher. Nesta condição, atualiza também o fato de ser ela, mais do que o homem, que, neste mundo terreno, de aparências e imitações, segundo a perspectiva platônica (2002), também retomada pelo discurso saramaguiano, está ligada mais diretamente a prover e a protege a vida, primeiro com seu ventre, depois com seu seio, com seu cuidado e orientação, até que o novo ser se torne auto-suficiente. A esta Cipriano contempla com o seu sopro humanamente divino e como que lhe transmite uma espécie de vida, como no paradigma bíblico. Aos outros não, e muito menos às cópias que serão feitas de todo eles, inclusive da enfermeira. Trata-se não mais de criação, mas de produção em série, ainda que não industrial, mas artesanal, de cópias, mecanicamente produzidas, porque sem um envolvimento maior. Perde-se a magia, todo o envolvimento, toda a sacralização, toda a semelhança interior conforme os campos semânticos do léxico utilizado.
Não obstante, todas as peças, ao serem abandonadas, são como que sepultadas, de uma maneira contrita e cheia de reverência, como num ritual. É a isotopia de um ritual de sepultamento que se pode extrair das palavras utilizadas:
Cipriano Algor aproximou-se da porta da casa e começou a dispor as estatuetas no chão, de pé, firmes na terra molhada, e quando as colocou a todas voltou ao forno, nessa altura já os outros viajantes tinham descido da furgoneta, nenhum deles fez perguntas, um a um entraram também no forno e trouxeram bonecos para fora, (...) e os bonecos iam pouco a pouco ocupando o espaço em frente da casa, e então Cipriano Algor entrou na olaria e retirou com todo o cuidado da prateleira as estatuetas defeituosas que ali tinha juntado, e reuniu-as às suas irmãs escorreitas e sãs, com a chuva tornar-se-ão em lama, depois em pó quando o sol a secar, mas esse é o destino de qualquer de nós, agora já não é só diante da casa que as estatuetas estão de guarda, também defendem a entrada da olaria, no fim serão mais de trezentos bonecos olhando a direito, palhaços, bobos, esquimós, mandarins, enfermeiras, assírios de barbas, até o Achado não precisa que lhe expliquem o que se está a passar aqui . (SARAMAGO: 2000, 349).
Aos inúmeros vocábulos que remetem o leitor ao inerte, há outros que humanizam esses objetos decorativos: “ irmãs”, “sãs”, “com a chuva tornar-se-ão em lama, depois em pó quando o sol a secar, mas esse é o destino de qualquer de nós” “agora já não é só diante da casa que as estatuetas estão de guarda, também defendem a entrada da olaria” . A sacralização vem do modo silencioso, respeitoso, de reverência e devoção com que tudo é feito: Algor começa a colocar as estatuetas em frente à casa em silêncio e os demais seguem-no: “nenhum deles fez perguntas”, “retirou com todo o cuidado da prateleira as estatuetas defeituosas”, o cão também “não precisa que lhe expliquem o que se está a passar aqui”.
O esforço de reconstrução da identidade, a condição de duplicidade com suas criaturas não encontra eco nos consumidores do Centro que continuam não se identificando com os seus produtos, segundo o inquérito a que foram submetidos. Das vinte e cinco pessoas consultadas, só duas gostaram:
Escolhemos vinte e cinco pessoas de cada sexo, de profissões e rendimentos médios, pessoas de antecedentes familiares modestos, ainda ligados a gostos tradicionais, e em cujas casas a rusticidade do produto não fosse destoar demasiado, E mesmo assim, É verdade, senhor Algor, mesmo assim os resultados foram maus,” “Só as duas últimas responderam agradecendo a possibilidade que lhes tinha sido proporcionada de decorarem gratuitamente a sua casa com uns bonequinhos tão simpáticos, há que acrescentar que se trata de pessoas idosas que vivem sós,”(SARAMAGO: 2000, 291).
Ao manter-se ainda preso à necessidade vital de sobrevivência, de envolvimento emocional, ao barro, à água e à terra, ao fogo, ao forno arcaico, ao ar, ao sopro, a reconstrução da identidade do artesão, como duplos, não corresponde à identidade que o Centro, como espírito, segundo o chefe do departamento de compras (SARAMAGO: 2000, 292, 293) cria, modela, não mais a partir do barro, mas do plástico, e não como duplos, mas como produção desenfreada, segundo Jean Baudrillard, em seu livro Simulacros e simulação, quando a imagem (...) não tem relação com qualquer realidade: ela é o seu próprio simulacro puro, a simulação como uma estratégia de real, de neo-real e de hiper-real, que faz por todo o lado a dobragem de uma estratégia de dissuasão.( 1991, 13, 14)
A identidade esperada pelo Centro e pelos seus consumidores, é uma necessidade induzida de fora para dentro: como se lê no grande cartaz, é preciso que os compradores necessitem do que o Centro lhes oferece, do que lhes quer vender e não o Centro oferecer-lhes o que necessitam :
Na fachada do Centro, por cima das suas cabeças, um novo e gigantesco cartaz proclamava, VENDER-LHE-ÍAMOS TUDO QUANTO VOCÊ NECESSITASSE SE NÃO PREFERÍSSEMOS QUE VOCÊ PRECISASSE DO QUE TEMOS PARA VENDER-LHE.”(SARAMAGO: 2000, 282) .
A transformação dos “prisioneiros” encontrados na escavação, ou, quem sabe, fabricados, conforme algumas sugestões detectadas na obra, que tanto comovem Algor e Marçal, fazendo com que se reconheçam neles, como duplos, repetindo a epígrafe platônica, em grande espetáculo, agora, como na obra de Guy Debord (1997, único, preservado pelo silêncio, pela sua transformação numa espécie de interdito sagrado, para causar impacto, mas com a finalidade de obter lucros, conforme outro cartaz:
BREVEMENTE, ABERTURA AO PÚBLICO DA CAVERNA DE PLATÃO, ATRACÇÃO EXCLUSIVA, ÚNICA NO MUNDO, COMPRE JÁ A SUA ENTRADA. (SARAMAGO: 2000, 350).
O seu caráter absoluto revela-se ainda, entre outros elementos, no fato de alguns guardas preferirem os apartamentos com janelas voltadas para o interior do próprio shopping, por considerarem o espetáculo que ele oferece muito mais atraente do que o exterior, como diz Marçal Gacho a Marta:
Queres tu dizer que há apartamentos cujas janelas dão para o interior do próprio Centro. Fica sabendo que há muitas pessoas que os preferem, acham que a vista dali é infinitamente mais agradável, variada e divertida, ao passo que do outro lado são sempre os mesmos telhados e o mesmo céu. (SARAMAGO: 2000, 276).
A caverna de Platão, os prisioneiros, tudo é transformado em espetáculo, em mercadoria conforme Debord: O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo. (DEBORD: 1997, 30). É o mundo da relação mediada pelas imagens, conforme ainda o mesmo filósofo: o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens. (DEBORD:1997, 14).
A posição assumida pelo chefe de compras e dos que possuem uma identidade totalmente coincidente com o que deseja o Centro bem como o vocabulário sacralizador apontam para uma relação de simulacro porque é sem a profundidade, sem admissão da coexistência do outro com o eu, de um outro com independência, mas como uma produção em série, em escala industrial ou pós industrial, uma relação mediada por imagens, o mundo em que tudo se transformou em mercadoria com objetivos de lucro.
Contrariamente ao que deseja o deus Centro, Algor, Marçal, Marta, Achado, e alguns outros, possuem ainda uma identidade não totalmente coincidente com o que ele aspira, expresso nos seus cartazes, entre outros elementos. Em razão desse divergência, dessa diferença, abandonam-no, recusam a segurança que ele representa e vão em busca do arcaico, do natural, do que está na natureza, enquanto ela existir, de sua identidade de duplo e não de simulacro.
Os elementos apontados permitem ainda a ilação de que Saramago, na obra em questão, representa o mundo e o homem contemporâneos, dividido entre a história, a cultura e o ser em conformidade com a tradição e o contemporâneo, cada vez mais afastados dela, com o olhar num progresso que busca se passar por ela, pelo que ela tem de relação viva com o homem e o mundo.
BIBLIOGRAFIA
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Trad.: Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Trad.: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz T. Silva e Guacira L. Louro. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2006.
A Bíblia de Jerusalém. Trad.: Euclides M.Balancin et alii. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus, 1995.
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PADOVANI, H. e CASTAGNOLA, L. História da filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1962.
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ROSSET, Clément O real e seu duplo. Ensaio sobre a ilusão. Trad.: José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
SARAMAGO, José. A Caverna. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
1. Professora Doutora de Literatura Portuguesa da Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas da USP.